por Ângela Carrato — publicado 26/04/2015 08h03
Envolta em escândalos, baixos índices de audiência e atos em prol da cassação de sua concessão, a TV Globo faz aniversário
Núcleo Piratininga de Comunicação
Sem o
brilho de outras épocas, a TV Globo comemora cinco décadas de existência. Nunca
a sua audiência esteve tão baixa. No dia 1ª de abril ocorreram atos em prol da cassação de sua concessão em diversas cidades
brasileiras. O do Rio e Janeiro contou com 10 mil pessoas.
Artistas globais e a falecida viúva de Roberto Marinho integram a
relação de suspeitos
de crimes de evasão fiscal e
serão alvo de investigação pela CPI do Senado, criada para analisar o caso
batizado como “Suiçalão”.
Ao
assumir a postura pró-tucanos durante a campanha eleitoral de 2014, a emissora
perdeu parte da regia publicidade oficial com que sempre foi contemplada. Os
protestos contra a TV Globo vão continuar e existem pelo menos 10 razões para
que os setores comprometidos com a democratização da mídia no Brasil não tenham
nada a comemorar neste cinquentenário.
1.
Marinho ficou com o canal 4 – Nos idos
de 1950, a rádio líder absoluta de audiência e mais querida do Brasil era a Nacional,
de propriedade do governo federal. O sucesso era tamanho que animou seus
dirigentes a solicitarem ao presidente Juscelino Kubitschek a concessão de um
canal de TV. Juscelino considerou a reivindicação justa e prometeu para “
breve” a concessão.
No final de 1957, o Canal 4 era concedido para a inexpressiva
Rádio Globo, de Roberto Marinho. As pressões do então magnata da comunicação,
Assis Chateaubriand, foram decisivas contra a Rádio Nacional. Ele aceitava
qualquer coisa, menos que a Nacional ingressasse no segmento televisivo. O
Brasil perdeu assim a chance histórica de ter, no nascedouro, duas modalidades
de televisão, a comercial e a estatal voltada para o interesse público como
seria a TV Nacional.
2. O
acordo que feriu os interesses nacionais - A TV Globo começou a operar de forma discreta
em 26 de abril de 1965 e seus primeiros meses foram um fracasso de audiência.
Sua operação só foi possível graças aos milhares de dólares que recebeu do
gigante da mídia norte-americana Time-Life, apesar da emissora ainda hoje
sustentar que se tratou apenas de “um contrato de cooperação técnica”. A
realidade, fartamente documentada por Daniel Herz, no já clássico A
história secreta da Rede Globo (1995) prova o contrário.
Roberto Marinho e o grupo Time-Life contraíram um vínculo institucional de tal
monta que os tornou sócios, o que era vedado pela Constituição brasileira. Foi
este vínculo que assegurou à Globo o impulso financeiro, técnico e
administrativo para alcançar o poderio que veio a ter.
3. Apoio
à ditadura (1964-1985) - Durante
quase 20 anos, TV Globo e governos militares viveram uma espécie de simbiose.
Os militares, satisfeitos por verem na telinha apenas imagens e textos
elogiosos ao “país que vai para a frente”, retribuíam com mais e mais benesses
e privilégios para a emissora. Ela enfrentou alguns casos de censura oficial,
após a edição do AI-5 em 1968, mas o que prevaleceu foi o apoio incondicional
de sua direção aos militares e a autocensura por parte da maioria de seus
funcionários. Some-se a isso que a TV Globo sempre se esmerou em criminalizar
quaisquer movimentos populares.
4.
Combate às TVs Educativas – No poder,
algumas alas militares viram na radiodifusão um caminho para combater a
“subversão” e, ao mesmo tempo, promover a integração nacional. Por isso, em
1965, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) solicita ao Conselho Nacional de
Telecomunicações a reserva de 98 canais especificamente para a TV Educativa.
Pouco depois, Roberto Marinho começava a agir.
O decreto-lei nº 236 de março de 1967 formalizava a existência das
emissoras educativas, mas criava uma série de obstáculos para que funcionassem.
O artigo 13, por exemplo, obrigava estas emissoras a transmitirem apenas
“aulas, conferências, palestras e debates”, além de proibir qualquer tipo de
propaganda ou patrocínio a seus programas. Traduzindo: as TVs Educativas
estavam condenadas à programação monótona e à falta crônica de recursos. O que
contribuiu para cristalizar a visão de que a Globo é sinônimo de qualidade.
5. O
programa global de Telecursos - O projeto
de Educação Continuada por Multimeios envolvia um convênio entre a Secretaria
de Planejamento da Presidência da República, o BID, a Fundação Roberto Marinho
(FRM) e a Fundação Universidade de Brasília (FUB). Aparentemente, o objetivo era
nobre: “o atendimento à educação de população de baixa renda do país, mediante
a utilização e métodos não tradicionais de ensino”.
Na
prática, o convênio ficou conhecido como Programa Global de Telecursos e
atendia exclusivamente aos interesses da FRM. Através dele, a FRM pretendia,
sem qualquer custo, apoderar-se do milionário “negócio” da teleducação no
Brasil. Para tanto, esperava contar com recursos nacionais e internacionais
inicialmente da ordem de 5 milhões de dólares embutidos em um pacote de 20 milhões
de dólares solicitados pelo governo ao BID no início de 1982.
A tentativa das Organizações Globo de se apropriar dos recursos
destinados às TVs educativas chega à imprensa no início de 1983. O “tiroteio”
entre os jornais Globo e Folha de S.Paulo durou meses e o convênio, que acabou
não sendo assinado, só foi sepultado três anos depois, com o fim do regime
militar. Ainda hoje a FRM representa o Brasil em vários fóruns internacionais
sobre educação.
6. O caso
Proconsult - Leonel
Brizola foi um dos políticos brasileiros mais combatidos pela TV Globo. Marinho
nunca o perdoou por ter comandado a “rede da legalidade”, emissoras de rádio
pró João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros à presidência da
República, em 1961. Com a vitória do golpe civil-militar de 1964, Brizola foi
para o exílio e só pode retornar ao Brasil com a anistia, em 1979.
O Caso Proconsult foi uma tentativa de fraude nas
eleições de 1982 para inviabilizar a vitória de Brizola para o governo do Rio
de Janeiro. A fraude foi denunciada pelo Jornal do Brasil, então o principal concorrente de O
Globo e relatada
pelos jornalistas Paulo Henrique Amorim, Maria Helena Passos e Eliakim Araújo
no livro Plim Plim, a peleja de Brizola contra
a fraude eleitoral (Conrad, 2005). Devido à participação de
Marinho no caso, a tentativa de fraude é analisada no documentário
britânico Beyond
Citizen Kane, de 1993. A TV Globo defendeu-se argumentando que não havia
contratado a Proconsult e que baseava a totalização dos votos em apuração
própria. Em 15 de março de 1994, Brizola, como governador, voltou a vencer a TV
Globo ao obter, na Justiça, direito de resposta na emissora contra críticas de
que era vítima.
7.
Ignorou as Diretas Já - O
primeiro grande comício das “Diretas-Já” aconteceu em São Paulo, em 25 de março
de 1984 e coincidiu com o 430º aniversário da cidade. A TV Globo tratou o
comício da Sé como um dos eventos comemorativos do aniversário da cidade,
diminuindo deliberadamente sua relevância política. Omissões semelhantes
repetiram-se em outras capitais. De acordo com o ex-vice-presidente das
Organizações Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, em entrevista
ao jornalista Roberto Dávila, na TV Cultura, em dezembro de 2005, foi o próprio
Roberto Marinho, quem determinou a censura daquele comício, impedindo que
manifestantes fossem ouvidos e proibindo o aparecimento do slogan "Diretas
Já".
A versão de Boni é diferente da que aparece no livro Jornal
Nacional - A Notícia Faz História (Zahar, 2004), e que representa
a versão da Globo. Aliás, a emissora vem tentando reescrever a sua história e,
ao mesmo tempo, reescrever a própria história brasileira. A partir das
Diretas-Já teve início a utilização, pelos movimentos populares, do bordão “O
povo não é bobo. Abaixo a Rede Globo”.
8.
Manipulação - Na
eleição de 1989, a TV Globo manipulou o último e decisivo debate entre o
candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva e o do PRN, Fernando Collor. No
telejornal da hora do almoço, a emissora fez uma edição equilibrada do debate.
Para oJornal Nacional,
houve instruções para mudar tudo e detonar Lula, editando-se os seus piores
momentos e os melhores de Collor. Desde então, pesquisas e estudos sobre
este “caso” têm sido feitas, destacando-se as realizadas por Venício A. Lima,
professor aposentado da Universidade de Brasília.
9. Contra
a democratização da mídia - Todos os países democráticos
possuem regulação para rádio e televisão. No Reino Unido, por exemplo, a mídia
e sua regulação caminharam juntas. Quando, em 2004, o governo Lula enviou ao
Congresso Nacional projeto de lei criando o Conselho Nacional de Jornalismo,
uma espécie de primeiro passo para esta regulação, foi duramente criticado pela
mídia comercial, TV Globo à frente. Desde sempre, as Organizações Globo foram
contrárias a qualquer medida que restrinja o poder absoluto que a mídia
desfruta no Brasil. Prova disso é que o Capítulo V da Constituição brasileira,
que trata da Comunicação Social, até hoje não saiu do papel.
Os compromissos dos mais diversos movimentos sociais brasileiros
com a regulação da mídia foram reafirmados durante o 2º Encontro Nacional pelo
Direito à Comunicação, de 10 a 12 de abril em Belo Horizonte. Sua carta final, “Regula Já! Por mais democracia
e mais direitos”, conclama movimentos sociais e ativistas a unirem
forças para pressionar o governo a abrir o diálogo com a sociedade sobre a
necessidade de se regular democraticamente a mídia.
10.
Ativismo pró-impeachment - A mídia,
em especial a TV Globo, tem tido papel protagonista nas manifestações contra a
presidente Dilma Rousseff e o PT. Alguns estudiosos chegam a afirmar que
dificilmente estas manifestações teriam repercussão se não fosse a Rede Globo. Em outras palavras, a Rede
Globo, tão avessa à cobertura de qualquer movimento popular, entrou de cabeça
na transmissão destas manifestações. No domingo 15/04, por exemplo, mobilizou,
como há muito não se via, toda a sua estrutura com o objetivo de ampliar e dar
visibilidade a estes atos. A título de comparação, as manifestações de
13/04, que também aconteceram em todo o Brasil e defenderam a Reforma Política,
não mereceram cobertura tão dedicada da sua parte.
Nas redes
sociais, internautas repudiaram a cobertura feita pela TV Globo e alcançaram,
durante 48 horas ininterruptas, para a hashtag #Globogolpista, a primeira
posição entre os assuntos mais comentados do Twitter. Novos protestos estão
previstos.
Este já é
o pior aniversário da TV Globo em toda a sua história.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de
Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade
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