Como sempre, Chico nos deu uma boa lição
Entre humanos que
relincham e outros capazes de zunir, num comportamento próprio de quadrúpedes
morais, mais uma vez Chico Buarque de Holanda assegurou seu lugar na história
do Brasil e dos brasileiros.
A
cena vista e gravada num fim de noite no Rio de Janeiro é apenas a confirmação
recente de que Chico é um artista que sabe qual é seu lugar em
cada momento de nossa história.
Comporta-se dessa
maneira há meio século, seja através da música, dos versos de gênio, de uma literatura cada vez mais apurada e espetacular. Age
assim pela postura política de quem recusa o lugar de artista-mercadoria e sabe responder aos
percalços e tragédias da conjuntura histórica com clareza, com valentia e uma
auto ironia que o acompanha tanto nas horas agradáveis como nas mais difíceis,
como se descobre pelo depoimento de um de seus amigos de “Chico: um artista
brasileiro”, documentário que é uma obra prima obrigatória para todo brasileiro
preocupado em entender o seu país em 2015.
Mais
do que um poeta, um grande escritor recém confirmado, Chico Buarque é uma das
raras consciências da nação. Ajudou e ajuda os brasileiros a
entender o país em que vivem. Por qualquer meio utilizado, seus enredos
convergem para a defesa das grandes maiorias, a solidariedade diante dos
explorados e excluídos.
Sempre
denunciou o regime militar, combateu a censura, a brutalidade covarde da
ditadura e o empobrecimento dos anos 1960 e 1970. Antes e depois da
democratização, atuou para defender a primazia dos direitos e interesses dos
que não tem direito à palavra, o que explica a importância do pobre, do negro,
do explorado, em sua música, na literatura, no engajamento político direto, num
tratamento
frequentemente solidário e até carinhoso em alguns momentos. Entendeu o ponto de vista
mulher, muito antes que se tornasse moda. Defendeu - como o filme mostra num
depoimento surpreendente do início da carreira - os direitos de homossexuais
quando palavras como veado e bicha eram parte do vocabulário familiar.
Acima
de tudo recusou as clássicas tentativas de acomodação com os interesses do
alto, o que se reflete num comportamento que rejeita as vulgaridades típicas
que a sociedade contemporânea reservas aos artistas de sucesso – a começar pelo
inevitável beija-mão dos ricos e poderosos, entre eles a TV Globo.
Mostrando
que aquilo que parece inevitável pode ser evitado, Chico mostrou uma força
moral surpreendente no país da dialética da malandragem. Tem compromissos
claros. Nunca deixou de ter um lado e sabemos muito bem que lado é este – e é
isso, mais do que qualquer outro fator, que explica vários momentos de sua
carreira, inclusive a agressão da segunda-feira.
Atacado,
cercado, naqueles movimentos tensos que podem descambar para uma situação fora
de controle, Chico soube enfrentar com sorrisos e ironias uma provocação
tipicamente fascista. Ouviu expressões inaceitáveis de ódio (“você é um merda,
quem apoia o PT é um merda”) e ressentimento (“para quem mora em Paris é
fácil”).
Manteve
a postura adequada ao dizer que cada um tem direito a liberdade de sua opinião
(“eu acho o PSDB bandido. E aí?”). No dia seguinte, ao postar a música "Vai
trabalhar, vagabundo", lembrou a matriz moral de uma elite que jamais
aceitou pegar no pesado. Três séculos e meio de escravidão nos contemplam. Seu
nome é o desprezo pela democracia, a vontade indomável de recuperar privilégio,
o desprezo pelos de baixo.
Meses
depois da filósofa Marcia Tiburi escrever “Como conversar com um fascista”,
Chico Buarque saiu da teoria para o terreno áspero da prática.
A
experiência ensina que a bestialidade fascista costuma ser uma
ação preparatória para atos de violência física, aberta
e escancarada. É uma faísca a espera de uma chama capaz de produzir uma
catarse.
Ao
contrário de uma briga de rua, dos conflitos entre gangues adolescentes e mesmo
guerras por ponto de tráfico, que se equivalem num mesmo universo entre
interesses idênticos e apenas concorrentes, a violência fascista pretende
assumir sempre um caráter político punitivo. É aí, pela pancadaria sem freios,
até selvagem, que tenta produzir um espetáculo para sua ideia de superioridade
com direito a prevalecer com base na força
bruta.
Simula
um discurso de redenção num universo que – de seu ponto de vista aloprado - se
tornou incapaz de aceitar indispensáveis remédios civilizatórios. Tenta
acobertar a própria brutalidade, de caráter criminoso, a partir de um discurso
que busca apontar supostas falhas morais, incorrigíveis, inaceitáveis e
vergonhosas, no Outro. Seu discurso tem como destino a
morte, numa agressão animalesca que quer fingir que não se trata de pura
bestialidade doentia, tentando justificar-se pelas falhas e faltas do Outro. É pura barbárie, mas
pretende ser castigo. Quer dar uma lição.
Num
flerte que nasceu pela ilusão suicida de que os movimentos fascistas podem ser
úteis a um negócio que eu sempre imaginei que precisava da liberdade de expressão
para sobreviver, nossos meios de comunicação fizeram um papel vergonhoso. Numa clássica banalização do mal, pois precisam das
bestas-feras para alimentar um golpe de Estado disfarçado de impeachment,
editaram um noticiário com verbos e palavras que invertem os papéis,
transformando a vítima em agressor. É preocupante, quando se recorda a estatura
cultural de Chico Buarque de Holanda. Nem ele precisa poupado, ensina-se.
Vale-tudo - essa foi a mensagem no dia seguinte.
Quem
deu a boa lição foi Chico e isso não surpreende, para quem já assistiu “Chico:
um artista brasileiro”. Não vou lembrar, aqui, as inúmeras passagens
maravilhosas e diversas cenas pouco conhecidas da biografia de Chico Buarque.
Só isso já vale o filme – mas o documentário tem mais. Tem ideias, reflexões.
Fico
na principal, que tem a ver com o Brasil de hoje. Num depoimento sobre um país
envolvido com um ambiente de desencanto e inconformismo com a economia, a
política, a cultura, Chico Buarque formula uma visão indispensável.
Diz
que a situação
“piorou
porque
melhorou”.
Você
entendeu: as mudanças e progressos ocorridos num período recente, quando as
maiorias conquistaram direitos e garantias impensáveis em qualquer época,
mudaram o país de alto abaixo. Mas essas mudanças trouxeram contrapartidas que,
do ponto de vista de quem já se encontrava do outro lado da nossa imensa
avenida social, nem sempre são confortáveis, muito menos bem vindas. Muitas
podiam ser corretas, mas sequer ocorreram como se tinha imaginado. E agora?
pergunta o filme.
Falando
dos anos de sua juventude, em boas escolas, numa família com vida confortável,
Chico responde. Lembra da bossa nova, dizendo que, para seu gosto pessoal, era
uma música muito mais agradável do que a fase atual da música
brasileira. Admite, contudo, que fala de um ponto de vista de uma determinada
elite, com uma certa formação e hábitos próprios de quem habita determinados
patamares da pirâmide social.
Deixa
claro, com sinceridade, que prefere viver num país onde todos possam expressar
a música a seu gosto e a seu estilo – mesmo que isso não seja o mais agradável
a seus ouvidos. Essa é a opção.
Você
sai do cinema convencido de que, como a maioria das pessoas, Chico tem muitas críticas ao que ocorre no país de hoje. Nem por isso, contudo, perdeu as referências de sua história nem os valores que nos ensinou a
preservar – mesmo quando eram impronunciáveis e até malditos. Essa é sua força,
seu lugar.
Recusa-se a negociar princípios democráticos em nome do gosto
pessoal.
Essa
é a lição que se deve aprender.
porPauloMoreiraLeite
ôXENTE, CUIDADO, pois
as palavras na cor vermelha constam
originariamente no texto, mas os destaques e ênfases são deste BLOGUEIRO.