Um ditado popular bem conhecido por
aqui é "nunca cuspa no prato em que você comeu". Digamos que trata-se
de uma maneira bem tosca de dizer que é preciso sempre manter a gratidão para
os que te ajudaram. Nos "dez mandamentos" da Família Marinho, este
talvez seja o número um.
As organizações Globo cresceram de mãos
dadas com a ditadura militar. Ela serviu ao projeto de unificação nacional
promovido pelos generais do "Brasil grande". Foi a correia de
transmissão e legitimação do poder autoritário e se beneficiou disso.
Representante genuína da elite política
e econômica, a Família Marinho nunca vacilou em se posicionar na cena política
alinhada a esses interesses, que na esmagadora maioria das vezes não é o
interesse da população, e nem do país. Democracia, liberdade, direitos sociais,
distribuição de renda, soberania, não são objetivos que constem dos mandamentos
da Globo, e nem da elite nacional.
Então, não é de se espantar o apoio da
Família à intervenção militar no Rio de Janeiro, manifesto em editorial do
jornal O Globo – o porta-voz oficial dos Marinho – na última terça-feira (20): "Intervenção é oportunidade para sanear
instituições (...) Sanear essas instituições (polícia militar, civil, e
segurança pública) é fundamental para que as ações coordenadas entre as forças
federais e as polícias do estado possam surtir efeito, o que não vinha
acontecendo. Mas é preciso que elas sejam duradouras. Operações tópicas,
realizadas no varejo, já se mostraram ineficazes. Podem funcionar por algum
tempo mas, quando as forças se retiram, tudo volta a ser como era antes.
Portanto, não se pode cometer o mesmo erro".
Já preparava esta coluna para falar de
como a Rede Globo, através de seus telejornais – particularmente o Jornal
Nacional – criou um clima de terror que certamente impulsionou a intervenção. O
editorial só veio confirmar o que já estava evidente – a organização que apoiou
a ditadura militar, apoia a intervenção militar no Rio de Janeiro.
A história vai mostrar se este apoio
foi apenas passivo ou ativo.
Infelizmente, sabe-se que, sai
presidente, entra presidente (me refiro aos da República mesmo), a Globo tem
sido uma eminência com presença constante no Palácio do Planalto (primeiro o
pai, Roberto Marinho, agora os filhos). Por isso, duvido que uma decisão como
esta, a de decretar uma intervenção militar na segurança pública do Rio de
Janeiro, sede das Organizações Globo, tenha sido tomada sem que os chefões do
maior grupo de comunicação do Brasil tenham sido consultados.
Um telejornal focado na violência
carioca
Para não suscitar dúvidas: é claro que
há uma crise social gravíssima no Rio de Janeiro. Essa crise social, por
questões históricas, geográficas e populacionais criou as condições para a
consolidação de um sofisticado sistema criminoso.
A falência do Estado, a inépcia dos
governos, a falta de uma política de segurança pública são um alimento para a
violência na capital fluminense.
E, esse cenário foi piorado diante de
um governo federal que congela gastos por 20 anos e impõe uma agenda de
desmonte dos serviços públicos. Vale lembrar que o Rio de Janeiro é uma cidade
com forte presença de equipamentos públicos federais (por ter sido até a década
de 50 a sede do governo federal). A devassa contra a Petrobras também impacta
fortemente a dinâmica da economia no Rio de Janeiro e tudo isso é preciso se
avaliar quando se discute os problemas do Rio.
Mas, esta situação de crise social e
violência não é, nem nunca foi exclusiva do Rio de Janeiro. O Brasil possui 27
Estados e em todos eles – e em alguns até mais do que no Rio – os índices de
violência são alarmantes.
Segundo dados do 11º Anuário de
Segurança Pública, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
divulgado no final de setembro de 2017, o estado do Rio de Janeiro ocupava o
10º lugar no ranking dos estados mais violentos do país (se considerada a taxa
de assassinatos por 100 mil habitantes). Em números absolutos, o Rio de Janeiro
ocupa a segunda posição, atrás da Bahia. Já, se olharmos apenas para os
municípios, a capital fluminense não aparece nem mesmo entre as 30 cidades com
maior taxa de homicídios no país, segundo o Atlas da Violência publicado pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, em 2016.
Mas quem vê o Jornal Nacional pensa exatamente
o contrário disso.
Para a principal vitrine jornalística
do país, a violência do país praticamente se restringe ao Rio de Janeiro.
Assisti pacientemente a todas as
reportagens sobre violência veiculadas pelo JN de 01 de janeiro até 16 de
fevereiro de 2018, dia em que o desgoverno Temer decretou a intervenção militar
no Rio. Em 41 edições do JN, apenas 8 não abordaram temas relativos à violência
e segurança. Das outras 33, dez não trataram de questões envolvendo o Rio de
Janeiro. Vale registrar que até 9 de janeiro, uma greve da polícia militar no
Rio Grande do Norte mereceu a atenção do noticiário. Outro assunto foi a crise
envolvendo os presídios de Goiás no início do ano.
Ou seja, de 41 edições do Jornal
Nacional, vinte e três trouxeram reportagens sobre a violência do Rio de
Janeiro. Na maioria delas, o tom das matérias eram dramáticos, com uma
narrativa que destoa do tratamento dado aos demais casos de violência.
A Globo enquadrou este carnaval carioca
como o mais violento dos últimos anos. Apesar dos casos mostrados pelo
noticiário da emissora – arrastões na praia e roubos de turistas – não ser
diferente do que se passou em outros estados. Nenhuma reportagem da emissora
buscou mostrar a violência durante o carnaval em Salvador, Recife, Olinda, São
Paulo – isso para citar apenas quatro cidades que tiveram grandes blocos de
rua.
Ao escolher o Rio de Janeiro como
capital da violência e ocultar da sua cobertura os casos de violência que
acontecem no restante do país, a Globo criou uma narrativa de pânico e
sublinhou na sua cobertura a falta de ação e comando para enfrentar o
"crime organizado" no Rio de Janeiro.
O tom de cobrança de ações efetivas estava subjacente a toda a cobertura. Até
desembocar no anúncio da intervenção. No dia 16 de fevereiro, mais da metade do
tempo do JN foi dedicado ao decreto de Temer. Entre os parlamentares,
especialistas e pessoas ouvidas sobre a medida, praticamente todos avalizaram a
decisão do governo federal.
As considerações e ponderações, quando
apareciam, não eram para alertar para os perigos à democracia ou aos direitos
das pessoas, mas sim para os limites da intervenção. A única posição contrária,
foi a leitura no final da reportagem pela apresentadora Renata Vasconcelos, em
segundos, da posição da ONG Human Rights Watch.
A intervenção militar na segurança pública no Rio de Janeiro pode até não ter –
diretamente – o envolvimento da família Marinho.
Mas, indiretamente, é certo que o
tratamento dispensado pela Rede Globo à cobertura da violência no Rio
contribuiu para essa decisão.
Que, como já foi amplamente dito, tem
graves consequências para a democracia e provavelmente não vai resolver a
situação dramática da violência no Rio de Janeiro que sim, precisa de respostas
na área da segurança, mas precisa em primeiro lugar de respostas políticas e
econômicas para recuperar o papel do Estado como indutor da economia, para
gerar empregos e renda e reduzir a situação de penúria do povo fluminense.
A Globo demorou exatos 49 anos para
fazer o seu "mea culpa" por ter apoiado a ditadura que se instalou
com o golpe de 1964. Em editorial publicado no dia 31 de agosto de 2013, o
jornal finaliza afirmando que "À luz
da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que
o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do
período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor
absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma."
Ao que parece, precisaram menos de cinco anos para que a Família Marinho mudasse
sua opinião e se esquecesse do que escreveu. Ou, talvez, aquele editorial foi
apenas uma posição bastante oportuna para o momento político e não revelasse,
de fato, a opinião do grupo.
Talvez daqui a 50 anos vejamos outro
"mea culpa" por aí, isso se as Organizações Globo ainda existirem.