XANGÔ CAMINHANDO ENTRE OS EMPOBRECIDOS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS PRÁTICAS DO PODER JUDICIÁRIO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS GRUPOS VULNERÁVEIS EM ALAGOAS¹
Pedro Luis Rocha Montenegro²
Resumo
O presente Trabalho propõe uma reflexão sobre as práticas da Coordenadoria de Direitos
Humanos do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas que objetivam proteger os direitos
humanos dos grupos vulneráveis, à luz do referencial teórico da filosofia política de Hannah
Arendt, sublinhando a sua definição original de cidadania e destacando a inquietante e
atualíssima questão da necessidade de arranjos institucionais, dotados de poder de coerção
estatal para assegurar a plena fruição do rol dos direitos humanos consagrados
universalmente, problematizando a conceituação de grupos vulneráveis, apresentando os
antecedentes e os fundamentos dessas práticas, examinando os impactos delas nos processos
na defesa da cidadania e proteção dos direitos humanos dos grupos vulneráveis.
Palavras-chave: Poder Judiciário; Cidadania; Direitos Humanos; Grupos Vulneráveis.
Abstract
This paper proposes a reflection on the practices of the Human Rights Coordination of the
Court of Justice of the State of Alagoas that aim to guarantee the rights of citizenship and
protect the human rights of vulnerable groups, in the light of the theoretical framework of
Hannah Arendt's political philosophy, underlining its original definition of citizenship,
highlighting the disturbing and very current issue of the need for institutional arrangements,
endowed with state coercion power to ensure the full enjoyment of the universally enshrined
list of human rights, problematizing the conceptualization of vulnerable groups, presenting the
antecedents and the foundations of these practices, examining their impacts on the processes
in defense of citizenship and protection of the human rights of vulnerable groups.
Keywords: Judiciary; Citizenship; Human rights; Vulnerable Groups
1 Xangô é uma entidade (Orixá) bastante cultuada pelas religiões de matriz africana, sendo considerado o Deus
da justiça.
2 É Secretário da Coordenadoria de Direitos Humanos do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas.
1. Introdução:
Os Direitos Humanos e o exercício da cidadania ativa constituem os principais
instrumentos de defesa, garantia e promoção das liberdades públicas e das condições materiais
imprescindíveis para garantia do princípio constitucional da dignidade humana, sendo o Poder
Judiciário a última salvaguarda de tais direitos e a esperança de proteção efetiva deles.
A despeito disso, no Brasil é incipiente o grau de provocação do Poder Judiciário para
demandas envolvendo a proteção dos direitos da cidadania e a tutela dos direitos humanos de
grupos vulneráveis, refletindo um distanciamento recíproco entre a população empobrecida e
o Poder Judiciário.
Pesquisa realizada em 1996 pela Associação dos Magistrados Brasileiros em parceria
com o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) apontou que 79,5%
dos juízes entendem ser esse distanciamento uma das principais dificuldades do Poder
Judiciário. Já pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)³, realizada no
ano de 2009, registrou que dentre as pessoas que estavam em situação de litígio e buscaram
solução para este, apenas 57,8% recorreram ao Poder Judiciário. Analisando detalhadamente
os números da citada pesquisa, percebemos que quanto maior a escolaridade das pessoas mais
elas se declararam como estando em situação de conflito nos últimos cinco anos, já no tocante
à renda per capita, consta-se que os maiores percentuais de pessoas que estiveram em situação
de conflito no período concentram-se nas faixas de renda mais alta.
A pesquisa Quem Somos: A Magistratura que Queremos, da Associação dos
Magistrados Brasileiros – AMB4, que contou com o apoio da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro – PUC-Rio, apontou entre as três áreas mais importantes de atuação do
Poder Judiciário em uma democracia a defesa dos direitos humanos e controle da violência
estatal.
Corroborando com a identificação da problemática da inacessibilidade ao Judiciário,
Piovesan (2015, p. 577) destaca a necessidade de “qualificar o universo de demandas” levadas
ao crivo do Judiciário, para que, estas fossem, em maioria, referentes à busca por garantias de
direitos da cidadania, já que, segundo a renomada autora, o Poder Judiciário está deixando de
“ser utilizado para a garantia de direitos e passa a ser procurado principalmente para poder
³INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional por amostra de domicílios:
Características da vítimação e do acesso à justiça no Brasil em 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.4 ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS -AMB. Disponível em: https://www.amb.com.br/wpcontent/uploads/2019/02/Pesquisa_completa.pdf Acesso em: 06 de jul. 2020.
obter vantagens”.
Atento a esse distanciamento, acertadamente o Plano Estratégico do Poder Judiciário
de Alagoas para o sexênio 2015/2020, buscando aumentar a aproximação com a sociedade,
estabeleceu como um de seus macrodesafios a garantia dos direitos de cidadania, orientando a
sua missão para a construção da paz social por meio da prestação de serviços jurisdicionais
acessíveis, rápidos e efetivos.
Pretendemos nesse trabalho, usando categorias da filosofia política de Hannah Arendt,
examinar as práticas inovadoras do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas que se inserem
no esforço de focalizar a garantia dos direitos da cidadania e a proteção dos direitos humanos
como missão teleológica do judiciário e instrumento de aproximação com a sociedade.
2. Conceituando cidadania, direitos humanos e grupos vulneráveis:
Cidadania, direitos humanos e grupos vulneráveis são termos polissêmicos, carregados
de preconceitos, de modo que apresentam uma multiplicidade de significados muito além de
seu sentido original. Nesse trabalho acadêmico, para evitarmos as ambiguidades próprias dos
termos polissêmicos e/ou interpretações baseadas em preconceitos, faz-se necessário
explicitar quais os conceitos de cidadania, direitos humanos e grupos vulneráveis utilizaremos
como ferramentas analíticas das práticas que tencionamos examinar.
Recorremos ao pensamento filosófico de Hannah Arendt. Nascida em 14 de outubro
de 1906, no subúrbio de Linden, em Hannover, Alemanha, Arendt teve a sua vida e formação
intelectual profundamente marcada pelo mais emblemático acontecimento histórico do século
XX: a ascensão do Nazismo. A filosofia de Arendt inclui-se dentre as mais importantes do
referido século, por sua originalidade, assombrosa atualidade e acurada habilidade de analisar
os fatos históricos do seu tempo com uma refinada reflexão filosófica.
2.1 “A cidadania como direito de ter direitos”:
Arendt não escreveu especificamente sobre a temática da cidadania, entretanto, é
possível não apenas encontrá-la na sua obra, como também desenvolvê-la a partir dela,
mormente em sua obra Origens do Totalitarismo:
O homem do século XVIII se emancipou da história. A história e a natureza
tornaram-se ambas, alheias a nós, no sentido de que a essência do homem já
não pode ser compreendida em termos de um nem de outra. Por outro lado, a
humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava
de uma ideia reguladora, tornou-se hoje de fato inelutável. Esta nova
situação, na qual a “humanidade” assumiu de fato um papel antes atribuído à
natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito a ter direitos,
ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser
garantido pela própria humanidade. Nada nos assegura que isso seja
possível. (ARENDT, 1989, p. 332.)
Para o principal comentador brasileiro e responsável pela pioneira introdução da obra
arendtiana entre nós, Lafer (1988, p. 166), a cidadania definida como o “direito de ter
direitos” baseia-se no “acesso pleno à ordem jurídica que somente a cidadania oferece”.
Depreende-se do conceito arendtiano que a cidadania é lugar, por excelência, do
respeito à pluralidade humana, precisamente pelo fato de que “os homens, e não o Homem,
vivem na Terra e habitam o mundo”. (Arendt, 2010a, p. 8). Para Arendt, somente a
pluralidade da comunidade mundial é capaz de acolher os seres humanos, resguardando-os
enquanto sujeitos de direitos e os inserindo dentro de um ordenamento jurídico que os
possibilitam viver em comunhão, compartilhando o mundo comum.
Na perspectiva da autora, ser cidadão exige o pertencimento a um grupo, sem o qual é
impossível conceber um vínculo real com o mundo e nem tampouco o exercício da cidadania
ativa, em uma comunidade politicamente organizada.
É possível identificar na expressão original de Arendt, “o direito a ter direitos”, um
conceito de cidadania, onde a expressão “direito” diz respeito ao pertencimento ao grupo
humano, o que deve ser uma garantia elementar intrínseca a todos os seres humanos com
vistas a protegê-los das ameaças de Regimes Totalitários, que subtraem o seu estatuto de
humanidade, transformando-os em párias errantes em qualquer parte da Terra, decretando as
mortes das suas personalidades jurídicas. Por outro lado, a palavra “direitos”, no pensamento
arendtiano refere-se à condição sine qua non de pertencimento a uma comunidade política
para ser factível a inserção em aparato legal que garante a fruição dos direitos. Para Arendt
(1989, p. 334), a ausência de pertencimento a uma comunidade política, implica na interdição
do acesso ao espaço público, resultando no confinamento em uma vida privada inexpressiva.
Nesse processo, os cidadãos se refugiam nos indivíduos, em um estado de desalento e
abandono, propiciando a ambiência para a irrupção de Regimes Totalitários, que os
transformam em seres supérfluos e descartáveis.
Percebe-se que Arendt, embora não tenha escrita uma obra especifica sobre a temática
da cidadania, esta é intrinsecamente conectada ao núcleo fulcral do seu pensamento, que é a
experiência totalitária. A cidadania, para ela, não é uma ideia abstrata, pois se o mal político
se infiltra, alastrando-se como fungo pelas superfícies do mundo, dado o esvaziamento da
esfera pública, é a cidadania ativa o meio de combater esse mal:
O mal extremo infiltra-se no mundo quando os cidadãos abandonam o
espaço público-político para se refugiarem na segurança e no aconchego dos
valores privados; quando aceitam cumprir ordens que desaprovam, lavando
daí as mãos; quando desistem de pensar por si mesmos, para irem na onda.
Existe uma única defesa contra o totalitarismo: saber desobedecer, ousar
pensar pela própria cabeça, nunca desistir de si. (Vallée, 1999, p. 14).
2.2 Do fim dos direitos do homem, a reconstrução dos direitos humanos:
Era meados de junho de 1776, quando Thomas Jefferson, o principal autor
da Declaração da Independência Americana e um dos Founding Fathers –
“Pais Fundadores” dessa nação, escrevia que a vida, a liberdade e a busca da felicidade, deveriam ser
considerados verdades auto-evidentes, direitos inalienáveis de todos homens e que estes
seriam criados iguais.
Esses direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à felicidade que se apresentavam para
Jefferson no século XVIII como cristalinas verdades seguem em pleno século XXI sob fortes
questionamentos, o que denota a contemporaneidade da crítica arendtiana a eles, bem como
do seu esforço intelectual para reconstruí-los.
Tencionamos agora, portando, recorrendo mais uma vez a Arendt, discorrer sobre o
conceito de direitos humanos, que ela reconstruiu a partir da crítica ao caráter universalista
dos direitos humanos, utilizando tal conceito para o exame das práticas do Tribunal de Justiça
de Alagoas que visam garantir os direitos da cidadania e promover os direitos humanos dos
grupos vulneráveis em Alagoas.
Arendt também não escreveu uma obra especifica sobre o tema dos direitos humanos,
isso sob hipótese alguma fez dele um tema irrelevante dentro do seu pensamento. Basta, por
exemplo, uma leitura atenta de Origens do Totalitarismo para se vislumbrar a relevância da
crítica da filósofa aos direitos humanos.
Nessa obra escrita no contexto das angústias e incertezas que marcaram o pós-guerra,
no ensaio sobre o imperialismo, Arendt escreve no capítulo cinco um pequeno texto intitulado
O declínio do Estado-nação e o fim dos Direitos do Homem, produzindo uma aguda reflexão
sobre as perplexidades e os paradoxos dos direitos humanos, que incrivelmente são
extremamente atuais.
O centro da crítica de Arendt aos direitos humanos reside na avaliação que tais
direitos, considerados inalienáveis, nunca foram eficazes na proteção de determinados grupos,
como os apátridas e os refugiados, principais grupos vulneráveis do seu tempo.
Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico
como a discrepância entre os esforços de idealistas bem intencionados, que
persistiam teimosamente em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados
pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem
direito algum. Essa situação deteriorou-se, até que o campo de internamento
– que, antes da Segunda Guerra Mundial, era exceção e não regra para os
grupos apátridas – tornou-se uma solução de rotina para o problema
domiciliar dos ‘deslocados de guerra. (ARENDT, 2009, p. 312)
Nota-se, então, a antinomia das declarações de direitos humanos, ao dirigir-se a um ser
humano abstrato, que não existiria em lugar algum, justamente porque existia em todas as
partes. Para a filósofa alemã, apenas uma soberania nacional teria capacidade efetiva de
assegurar o usufruto pleno do rol dos direitos humanos. O destinatário não seria um ser
abstrato, mas sim o titular de nacionalidade que garantiria tais direitos, por intermédio de
arquiteturas institucionais, dotadas de poder de coerção, ditos de outro modo, os seres
humanos destituídos de vínculos políticos próprios de cidadania, a exemplo dos apátridas e
membros de minorias, não deteriam direitos em seu sentido fático e elementar, porquanto não
contariam com governos que protegessem direitos anunciados pelas declarações do século
XVIII.
Os direitos humanos apregoados nas solenes fórmulas norte-americanas (vida,
liberdade e procura da felicidade) e francesas (igualdade perante a lei, liberdade, proteção à
propriedade e soberania nacional), seriam inexequíveis, na medida em que seus destinatários
putativos não detivessem os meios para reivindicá-los. Foi nesse sentido a afirmação de
Arendt que os sobreviventes dos campos de concentração entenderam que “a nudez abstrata
de serem unicamente humanos era o maior risco que corriam”. (ARENT, 2012, p. 408).
A gramática dos direitos humanos quando é dirigida ao ser humano em abstrato, em
um estado de necessidade bruta, desprovido de qualquer forma de proteção estatal, é tão
imponente, quanto inócua. Podemos afirmar que para Arendt, parafraseando Beauvoir(5*), não se
nasce igual, torna-se igual, a garantia da igualdade ou qualquer outra garantia de direitos
humanos, não é um dado, mas o resultado do agir humano no mundo.
Portanto, como vimos nessa síntese, o tema dos direitos humanos é um tema de capital
relevância para Arendt. A sua tenaz crítica à universalidade abstrata deles, personificada na
fragilidade de proteger os apátridas e os refugiados, aqueles que em sua época seriam os
grupos de indivíduos mais vulneráveis a sofrer violações de direitos humanos, possui uma
nítida intenção de reconstrução dos direitos humanos.
É por essa razão que Hannah Arendt realça, a partir dos problemas jurídicos
suscitados pelo totalitarismo, que o primeiro direito humano é o direito a ter
direitos. Isto significa pertencer, pelo vínculo da cidadania, a algum tipo de
(5*) Simone de Beauvoir foi escritora, filósofa existencialista e ativista política feminista francesa, autora da célebre frase, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, contida no segundo volume do seu livro mais conhecido, O Segundo Sexo.
comunidade juridicamente organizada e viver numa estrutura onde se é
julgado por ações e opiniões, por obra do princípio da legalidade. (LAFER,
1988, p. 151).
Nesse sentido, Lafer enfatiza no final da sua obra, A reconstrução dos direitos humanos –
Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, o trabalho intelectual de Arendt para a reconstrução dos direitos humanos:
Creio que, finalizando, cabe uma derradeira observação sobre o alcance
filosófico e a intenção política do argumento exemplar, tal esmo proposto
por Hannah Arendt e utilizado neste trabalho, com o objetivo de indicar,
fundamentando, os caminhos para a reconstrução dos direitos humanos.
(LAFER, 1988, p. 308),
Arendt em um esforço intelectual revisita a noção de dignidade no pensamento kantiano, focado
não na busca dos fundamentos para os direitos humanos, mas, na garantia efetiva de que todas as
pessoas humanas deveriam ter preservadas a sua integridade física e política sendo portadores, deste
modo, de uma dignidade humana.
Em Arendt, a definição de dignidade humana relaciona-se com o conceito de juízo,
refletindo sobre a atividade humana do julgar e dialogando com a dimensão política dos
conceitos filosóficos de Kant, como lemos em Aguiar:
Nesse horizonte, ganha importância a vinculação entre juízo e dignidade
humana e a crítica arendtiana aos direitos humanos presente em Origens do
Totalitarismo, pela tendência a pautarem-se numa concepção abstrata de
humanidade e isso incidir numa prática que reduz os direitos humanos a
direitos civis: o direito à propriedade, à vida, ao trabalho etc. O humanismo
abstrato leva à piedade e não ao respeito, segundo Arendt, a categoria correta
para se pensar a solidariedade. (AGUIAR, 2006, p. 281)
Para Arendt a faculdade de julgar, a mais política das atividades dos seres humanos,
tem por função justamente aproximação imediata entre pensamento e ação na esfera pública,
servindo como o elo entre a vida do cidadão da pólis e a vida do espírito.
A partir da ideia de juízo, ganha sentido a reivindicação arendtiana exposta
em Origens do Totalitarismo de que os direitos humanos fossem tomados
como direitos públicos, cuja base seria a ideia de “direito a ter direitos”, isto
é, os homens devem ser respeitados não apenas como seres biológicos, mas
como cidadãos, seres livres, capazes de agir e julgar. Sem pertencer a uma
comunidade e sem nela deter poder, não há dignidade. Direitos humanos sem
possibilidade real de participar e decidir sobre o destino comum tornam-se
vazios, meros instrumentos propagandísticos para os governos. (AGUIAR,
2006, p. 282)
2.3 Grupos vulneráveis ou vulnerabilizados?
O conceito de Vulnerabilidade remete as discussões sobre direitos humanos,
geralmente associados à defesa dos direitos de grupos ou indivíduos fragilizados jurídica ou
politicamente, sendo também compreendido como a qualidade de vulnerável, o que é
suscetível de serem expostas às violações de direitos humanos devido a sua fragilidade e
dificuldade de acesso igualitário a bens e serviços universais disponíveis para a população.
Em Origens do Totalitarismo Arendt discorre sobre o processo de acumulação
imperialista ilimitada, com a ocupação central do Estado-nação pelos interesses da burguesia,
implicando em uma espécie de privatização da vida pública, o que mais tarde aprofundaria as
desigualdades mundiais, aduz Arendt:
Os interesses privados, que por sua própria natureza, são temporários,
limitados pelo período natural de vida do homem, agora podem fugir para a
esfera dos assuntos públicos e tomar-lhe emprestado aquela infinita duração
de tempo necessária para a acumulação contínua. Isto parece criar uma
sociedade muito semelhante àquela das formigas e abelhas, onde ‘o bem
Comum não difere do Privado; e sendo por natureza inclinadas para o
benefício privado, elas procuram consequentemente o benefício comum’.
Não obstante, uma vez que os homens não são nem formigas nem abelhas,
tudo isto é uma ilusão. A vida pública assume o aspecto enganoso de uma
soma de interesses privados, como se estes interesses pudessem criar uma
nova qualidade mediante a mera adição. (ARENDT, 1989, p. 175.)
Mais tarde na sua obra Sobre a revolução, que pôs fim ao mal entendido sobre o
suposto caráter de antimoderna atribuído à Hannah Arendt, a autora aborda diretamente
fenômenos modernos, diferentemente de Origens do Totalitarismo e A Condição Humana,
incidindo um fecho de luz sobre a modernidade tão criticada por ela nos demais textos. Nesse
livro, a autora ressalta a potência da política renascida nas iniciativas revolucionárias e nos
sistemas de conselhos que brotaram nas revoluções, refletindo ainda sobre a relação entre
política e pobreza.
Era tão impossível desviar os olhos da miséria e desgraça da grande maioria
da humanidade no século XVIII em Paris ou no século XIX em Londres,
onde Marx e Engels iriam refletir sobre as lições da Revolução Francesa,
quanto hoje em alguns países europeus, em muitos latino-americanos e em
quase todos os asiáticos e africanos. (ARENDT, 2011, p. 109.)
Da sua análise em As origens do totalitarismo quanto em A condição humana,
destaca-se a clareza com que Arendt indica a instrumentalização da política pelo propósito de
acumulação ilimitada de riqueza, destacando que o imperialismo, como forma típica da
compreensão burguesa de política, era “produto de dinheiro supérfluo e de gente supérflua”
(ARENDT, 1989, p. 181), e que “o lixo humano, que cada crise, seguindo-se invariavelmente
a cada período de crescimento industrial, eliminava permanentemente da sociedade
produtiva.” (ARENDT, 1989, p. 180).
Para Arendt a questão social traduzida na existência da pobreza e da miséria trouxe
para a esfera pública necessidades físicas antes restritas ao recesso privado do lar,
sublinhando que “a pobreza é mais do que privação, é um estado de carência constante e
miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida
porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos.” (ARENDT, 2011, p. 93).
Sustenta ainda Arendt, que Marx aprendeu com a revolução que a pobreza é um
problema político de primeira grandeza, convertida por ele em poderosa força política quando
interpretou “as necessidades imperiosas da pobreza das massas em termos políticos, como
uma revolta não por pão ou por bens, mas também pela liberdade.” (ARENDT, 2011, p. 95),
salientando que a transformação da questão social em uma força política em Marx deriva da
sua interpretação peculiar da pobreza nos termos de exploração de classe, como “um
fenômeno político, não natural, resultado da violência e da violação, e não da escassez.”
(ARENDT, 2011, p. 96). Podemos alargar esse entendimento, afirmando que as condições
que tornam indivíduos ou grupos vulneráveis são inaturais, decorrentes de processos de
espoliação de direitos e da negação de sua dignidade humana pelo sistema de acumulação
capitalista globalizado.
3. Coordenadoria dos Direitos Humanos, antecedentes, fundamentos, objetivos e
iniciativas:
3.1 Antecedentes e fundamentos:
O plano de gestão do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas para o biênio 20192020
estabeleceu dentre os seus macrodesafios: a garantia dos direitos de cidadania,
explicitando tratar-se de garantir no plano concreto os direitos da cidadania (CF, art. 1º, inc.
II), em suas múltiplas dimensões, buscando atenuar as desigualdades sociais e garantir os
direitos de minorias e o macrodesafio da adoção de soluções alternativas de conflito com o
fomento de meios extrajudiciais para resolução negociada de conflitos, com a participação
ativa do cidadão, estimulando a comunidade a dirimir suas contendas sem necessidade de
processo judicial, mediante conciliação, mediação e arbitragem.
A partir de então, se iniciou um intenso processo de gestação de um conjunto de
programas, projetos e ações, sempre assegurando a participação ativa da sociedade civil
alagoana nas discussões, com vistas à concretização desses macrodesafios.
A institucionalização da Coordenadoria de Direitos Humanos – CDH, pela Resolução
nº 37, de 12 de novembro de 20196, aprovada a unanimidade pelo Pleno do Tribunal, é a
culminância desse rico processo democrático, inspirado no referencial teórico das categorias
filosóficas de Hannah Arendt, particularmente nos seus conceitos e reflexões sobre as
temáticas da cidadania, dos direitos humanos e dos grupos vulneráveis e parametrizados pelos
atos normativos do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e nos instrumentos internacionais de
proteção dos direitos humanos da Organização dos Estados Americanos -OEA e da
Organização das Nações Unidas – ONU.
Nesse sentido, os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, a
exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos, no que se refere
ao judiciário como salvaguarda dos direitos humanos e defesa dos direitos da cidadania
destaca três dimensões essenciais, complementares e interdependentes:
I -o direito ao livre acesso à justiça;
II -a garantia da independência judicial (direito de toda pessoa ser ouvida, com as
devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente,
independente e imparcial, nos termos do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos
Humanos, do artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do artigo 10 da
Declaração Universal);
III -o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos
(direito a remédios efetivos).
Não é sem razão que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ estabeleceu como
macrodesafios do Poder Judiciário: a garantia no plano concreto dos direitos da cidadania
(CF, art. 1º, inc. II) na sua multiplicidade de manifestações, a busca para atenuar as
desigualdades sociais e a garantia dos direitos de minorias(7*) .
De igual modo, descreveu a missão do Poder Judiciário Brasileiro nos seguintes
termos: “fortalecer o Estado Democrático e fomentar a construção de uma sociedade livre,
(6*)Tribunal de Justiça de Alagoas. Disponível em: https://www.tjal.jus.br/?pag=consultas/resolucao. Acesso em 06
jul. 2020.
(7*) Conselho Nacional de Justiça. Página inicial. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/gestao-estrategica-eplanejamento/estrategia-nacional-do-poder-judiciario-2015-2020/. Acesso em: 06 de jul. de 2020.
justa e solidária, por meio de uma efetiva prestação jurisdicional”. (Estratégia Nacional do
Poder Judiciário 2015–2020).
Estabeleceu ainda, como visão de o Poder Judiciário ser “reconhecido pela sociedade
como instrumento efetivo de justiça, equidade e paz social” (Estratégia Nacional do Poder
Judiciário 2015–2020).
Logo, como se pode depreender, as bases para as iniciativas do Poder Judiciário de
defesa dos direitos da cidadania e proteção dos direitos humanos, especialmente de grupos
vulneráveis, alicerçam-se no seu objetivo finalístico, fundamenta-se nos instrumentos
internacionais de proteção dos direitos humanos e coaduna-se com a missão, a visão e o
macrodesafio da garantia dos direitos de cidadania dispostos na Estratégia Nacional do Poder
Judiciário 2015–2020.
Ademais, os princípios de igualdade e não-discriminação reconhecidos na Declaração
Universal de Direitos Humanos, incentivadores do respeito aos direitos humanos e às
liberdades para todos, sem distinção de qualquer tipo, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou qualquer outro tipo de opinião, origem social e nacional, propriedade,
nascimento ou outro status, bem como o disposto na Declaração e no Programa de Ação da
Terceira Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, adotada em 8 de setembro de 2001 em
Durban, África do Sul8 e, ainda, considerando, os esforços do Conselho Nacional de Justiça –
CNJ para realizar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), Agenda
2030, da Organização das Nações Unidas, incluindo-as no planejamento para 2020, e,
inclusive editando por conduto de sua Corregedoria Nacional, o Provimento nº 85, de 19 de
agosto de 2019, com vistas a internalizar os ODS na sua atuação, justificaram de
sobremaneira a criação da Coordenadoria de Direitos Humanos, no âmbito do Tribunal de
Justiça do Estado de Alagoas.
3.2 Objetivos e Iniciativas
A Coordenadoria de Direitos Humanos tem entre os seus principais objetivos(9*): o
assessoramento na formulação de políticas e diretrizes voltadas à salvaguarda dos direitos
humanos, o oferecimento de sugestões com vistas ao melhoramento das proposições
(8*) Organização das Nações Unidas. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/03/durban2001.pdf Acesso em: 06 jul. 2020.
(9*) Tribunal de Justiça de Alagoas. Disponível em: https://www.tjal.jus.br/?pag=consultas/resolucao. Acesso em 06 jul. 2020.
legislativas, projetos, programas e ações do Poder Judiciário Estadual na proteção dos direitos
humanos e a contribuição para a ampliação da atuação proativa do Poder Judiciário,
fortalecendo o Estado Democrático de Direito, fomentando a construção de uma sociedade
livre, justa, anti-racista e solidária.
Para perseguir a concretização desses objetivos a Coordenadoria desenvolve um
elenco de iniciativas que a seguir passamos apresentar:
O projeto Caravanas em Defesa da Liberdade Religiosa, iniciativa do Tribunal de
Justiça de Estado de Alagoas em parceria com a Defensoria Pública do Estado de Alagoas,
implementado com vistas à proteção do direito à liberdade de culto em Alagoas, difundindo e
promovendo a conscientização acerca do direito humano à liberdade de consciência e de
crença e ao livre exercício dos cultos religiosos, ampliando a presença do Poder Judiciário e
da Defensoria Pública junto aos grupos religiosos que sofrem intolerância religiosa de matriz
africana e contribuindo para a erradicação da intolerância religiosa;
A intolerância religiosa e a desigualdade social e racial estão secularmente arraigados
na história de Alagoas. O episódio denominado “quebra de Xangô” é emblemático: na noite
de 1º de fevereiro de 1912 o terror se espalhou pelos terreiros das religiões de matriz africana.
As invasões, espancamentos e prisões aos praticantes de candomblé, umbanda e outros cultos
durou até a madrugada de 2 de fevereiro, quando os praticantes homenageiam as entidades de
Oxum e Iemanjá. O quebra provocou o fechamento de vários terreiros e a dispersão de
ialorixás e babalorixás para outros Estados.
Hoje, em pleno século XXI, segundo o Atlas da Violência 201910, Alagoas é o estado
que apresenta a maior diferença na letalidade entre a mortandade de negros e não negros. Em
2017 a taxa de homicídios de negros superou em 18,3 vezes a de não negros. É um paradoxo
que a terra de Zumbi dos Palmares seja um dos locais mais perigosos do país para indivíduos
negros, ao mesmo tempo em que ostenta o título do estado mais seguro para indivíduos não
negros (em termos das chances de letalidade violenta intencional), onde a taxa de homicídios
de não negros é igual a 3,7 mortos a cada 100 mil habitantes deste grupo.
O Projeto Caravanas em Defesa da Liberdade Religiosa é parte do esforço para o
cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) -Agenda 203011 para o
Desenvolvimento Sustentável, referenciado na meta 1.3 da aludida agenda, ao promover
(10*) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro:
São Paulo. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em 06 jul.2020.
Organização das Nações Unidas. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wpcontent/
uploads/2015/03/durban-2001.pdf> Acesso em: 06 jul. 2020.
medidas de proteção social de pessoas em situação de vulnerabilidade, no caso concreto, de
pessoas que sofrem violações ou restrições ao seus direitos em razão do seu credo religioso.
Para fazer cumprir a obrigações contidas em instrumentos legais internacionais e
nacionais, tais como: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência, os Estatutos da Pessoa com Deficiência, do Idoso e da Igualdade
Racial, que reclamam uma atuação integrada do estado brasileiro na defesa desse grupo de
pessoas vulneráveis, foi criada a 14ª Vara Criminal da Capital(12*), denominada Vara dos Crimes
Contra as Populações Vulneráveis.
A 14ª Vara possui a competência para processar e julgar os crimes praticados contra
crianças, adolescentes, idosos e deficientes, bem como os crimes praticados contra populações
vulneráveis, tais como moradores de rua, negros, índios, lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais, transgêneros e congêneres, em virtude desta condição.
Mais recentemente, para colaborar com a repressão uniforme e de forma mais
ostensiva, permitindo o planejamento e a especialização para o combate a eventos criminosos
contra as populações vulneráveis a Coordenadoria elaborou uma minuta de Projeto de Lei
dispondo sobre a criação da Delegacia Especial dos Crimes Contra Vulneráveis.
Precidida de uma ampla discussão com as lideranças de entidades e/ou movimentos da
sociedade civil ligados aos grupos vulneráveis, contando com ainda com o importante
apoiamento do Ministério Público e da Defensoria Pública estaduais, a minuta foi
encaminhada ao Governo do Estado de Alagoas que já anunciou publicamente que irá enviar
o Projeto de Lei para aprovação da Assembleia Legislativa Estadual.
A delegacia ampliará a arquitetura institucional de defesa e proteção no sistema de
Justiça e Segurança Pública em Alagoas ao grupo de pessoas em condições de
vulnerabilidade. Essa arquitetura atualmente já conta com Promotorias especializadas no
âmbito do Ministério Público Estadual e Núcleos igualmente especializados na esfera da
Defensoria Pública Estadual.
Além disso, a eficácia da 14ª Vara, que tem competência exclusiva para processar e
julgar os crimes contra essa população dependerá, em grande medida, da criação de uma
delegacia com competência correlata.
(12*)Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas. Disponível
em:https://www.tjal.jus.br/comunicacao2.php?pag=verNoticia¬=16263. Acesso em 06 jul. 2020.
A delegacia como sugerida na minuta proposta, deverá contar com uma equipe
multidisciplinar, facilitando o atendimento, acolhendo as vítimas, de forma humanizada e
qualificada tecnicamente, com vistas a evitar aos dolorosos processos de revitimização e
assegurar os depoimentos sem danos, rendendo ainda uma justa homenagem póstuma a
Yalorixá Tia Marcelina ao denominar a delegacia com o seu nome. Tia Marcelina, yalorixá,
que teve seu terreiro invadido por um grupo miliciano, foi espancada barbaramente em 1º de
fevereiro de 1912, no episódio emblemático que foi conhecido como a quebra de Xangô, uma
das páginas de intolerância religiosa e racismo mais horrendas da história de Alagoas.
Para complementar, robustecendo o desenho institucional de proteção aos grupos
vulnerabilizados em Alagoas, encontra-se em processo de discussão com a Polícia Militar do
Estado de Alagoas -PMAL, a ampliação da “Patrulha Maria da Penha” com a criação de uma
Companhia ou Batalhão, no âmbito da PMAL, de proteção aos grupos vulneráveis.
Outra iniciativa da Coordenadoria, desta feita para a proteção do direito humano à vida
dos jovens negros e pobres, principais vítimas da inclemente violência homicida no Brasil, foi
à inclusão no Programa de Pesquisas Aplicadas para o Aperfeiçoamento da Gestão
Estratégica da Justiça, programa subordinado à Presidência do Tribunal de Justiça do Estado
de Alagoas com objetivo de fomentar pesquisas e estudos para superação dos Macrodesafios
estabelecidos na Estratégia Nacional do Poder Judiciário do Conselho Nacional de Justiça;
No Brasil, segundo os dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do
Ministério da Saúde (SIM/MS), em 201713 alcançamos o maior nível histórico de letalidade
violenta intencional, com 65.602 homicídios. O que representa uma taxa de aproximadamente
31,6 mortes para cada cem mil habitantes. Deste total, 35.783 foram jovens, representando
uma taxa de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens no país, sendo 75,5% das vítimas de
indivíduos negros (soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE,
utilizada também pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde SIM),
sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de
não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às
respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017,
aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.
Em Alagoas, esse cenário da desigualdade racial dos homicídios fica ainda mais
patenteado: a taxa de homicídios de negros superou em 18,3 vezes a de não negros. Em
termos das chances de um jovem negro ser vitimado pela violência letal, Alagoas é um dos
(13*) Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/mortalidade. Acesso em 06 jul.2020.
estados mais perigosos do país, e como mencionado anteriormente, paradoxalmente é o
Estado mais seguro para indivíduos não negros. A taxa de homicídios de não negros é igual a
3,7 mortos a cada 100 mil habitantes deste grupo.
A preocupação e a busca por uma atuação proativa do Poder Judiciário em relação ao
quadro da segurança pública no país, mormente a grave problemática dos homicídios, tem
sido crescente.
Em 2010, foi lançada pelos Conselhos Nacionais do Ministério Público (CNMP) e de
Justiça (CNJ) e o Ministério da Justiça (MJ), a Estratégia Nacional de Justiça e Segurança
Pública -ENASP, com o intuito de promover a articulação dos órgãos responsáveis pela
segurança pública, reunir e coordenar as ações de combate à violência e traçar políticas
nacionais na área. Dentre os propósitos da ENASP, destacam-se três relacionados à
necessidade da atuação eficaz e eficiente do Sistema de Justiça e Segurança Pública no
tocante à questão dos homicídios, a saber: a maior efetividade e sustentabilidade ao sistema de
Justiça e Segurança Pública com reflexos na diminuição da violência e na paz social, a
promoção de ações integradas de forma a atuar nas causas e nas consequências do desrespeito
à dignidade humana, com foco prioritário nos crimes de homicídio e a redução dos índices de
homicídio.
Trata-se de uma iniciativa inédita do Poder Judiciário, de corresponsabilidade na
redução da violência letal homicida, ao apoiar o desenvolvimento de um programa de
prevenção à violência contra a juventude negra em Alagoas, assentado em rigorosas
evidências técnicas e científicas, para agregar eficiência na tomada de decisões pelo sistema
de segurança pública e justiça, ampliando a capacidade dos poderes públicos de encontrarem
um percurso perene e pouco errático em termos da adoção e execução de políticas públicas
para prevenção da violência.
4. Considerações Finais:
Fica evidente que o conjunto de iniciativas da Coordenadoria cujos objetivos são
assegurar a proteção dos direitos humanos, prioritamente dos grupos vulneráveis, seguindo o
axioma aristótelico, de tratar os desiguais na medida das suas desigualdades, operam
holisticamente para:
a) incidir no plano do instituído sonegado, sobrepondo a racionalidade à razão
instrumental neoliberal, recorrendo aos princípios de imenso potencial de ampliação da
cidadania presente no constitucionalismo que é negado no cotidiano dos vulnerabilizados;
b) atuar no plano do instituído relido, lócus da hermenêutica, utilizando-a na leitura dos
instrumentos internacionais de direitos humanos e nos atos do Conselho Nacional de Justiça,
aplicáveis ao binômio cidadania e direitos humanos;
c) intervir no plano do instituinte negado, espaço do pluralismo jurídico que envolve os
dois planos anteriores, lugar privilegiado para a articulação com a sociedade civil, visando a
construção da cidadania institucionalmente, em um processo pelo o qual o direito
reivindicado, por vezes conquistado, enquanto satisfação de interesses e realizações de força
política, potencializa a capacidade de mobilização por mais direitos.
Escrever sobre a experiência da Coordenadoria de Direitos Humanos não foi uma das
tarefas das mais simples. Há no mínimo dois óbices cruciais a serem enfrentados, o primeiro
diz respeito ao fato da experiência ser recente e inconclusa, portando inacabada, não sendo
ainda possível mensurar todos os desdobramentos, impactos e resultados, porquanto, trata-se
de relato de uma práxis profissional, política e social inédita e aberta.
O segundo óbice a ser encarado nesse desafio reflexivo diz respeito às limitações
impostas pelo fato do autor desse trabalho acadêmico estar imerso diretamente na experiência
relatada, na condição de Secretário da Coordenadoria, logo a sua reflexão está impregnada e
sua teoria suja por essa práxis, inexistindo qualquer pretensão de construir uma “teoria pura”,
uma teoria desapaixonada e equidistante da realidade analisada.
É arriscado apontar um modo seguro de garantir os direitos humanos. O filósofo
italiano Norberto Bobbio, ainda no século XX, advertia que, em se tratando de direitos
humanos, “o problema grave de nosso tempo não era mais o de fundamentá-los, e sim o de
protegê-los” (BOBBIO, 1992, pág. 25.). E, mais adiante, pergunta-se o autor: “qual o modo
mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados.”
Por outro lado, é forçoso reconhecer a timidez dos poderes públicos no cumprimento
desse papel garantidor. Manter viva a chama da dignidade humana a ultima ratio dos Estados
Democráticos de Direito, criando uma ambiência que favoreça efetivação dos direitos,
promovendo ações nos territórios onde se concentram os grupos vulneráveis, e, por isso
mesmo mais suscetível à negação dos direitos da cidadania e as violações de direitos
humanos, para difusão dos direitos humanos e o empoderamento das pessoas em situação de
vulnerabilidade, ofertando os meios necessários e suficientes para que, por que elas com as
suas próprias forças exerçam sua cidadania de forma plena, participando ativamente da
construção da sociedade em que se inserem.
A sociedade brasileira anseia por uma justiça efetiva, proativa, célere, inclusiva e
acessível aos que mais precisam, porquanto é impossível a efetivação dos direitos da
cidadania e a realização dos direitos humanos sem os vínculos de seus titulares com alguma
forma política organizada e detentora de força coercitiva que os garanta.
Referências
AGUIAR, Odilio Alves (Org.). Origens do totalitarismo 50 anos depois. Rio de Janeiro:
RelumeDumará, 2001
ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Disponível em:
https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2019/02/Pesquisa_completa.pdf Acesso em: 06 de jul.
2020.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo –
Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Trad.
Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
ARENDT, A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Revisão técnica e apresentação de Adriano
Correia, 11 ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
ARENDT, Sobre a revolução. Trad. D. Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
BENHABIB, Seyla. Los derechos de losotros–
extranjeros, residentes y ciudadanos. Barcelona:
Gedisa, 2005.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Campus, 8ª edição, 1992.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019. Acesso em 06 jul.2020.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos –
Um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
LAFER, Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder.2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 13ª tiragem, 3ª
ed., SP: Malheiros, 2006.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Disponível em: https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/mortalidade.
Acesso em 06 jul. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wpcontent/
uploads/2015/03/durban-2001.pdf> Acesso em: 06 jul. 2020.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE ALAGOAS. Disponível em:
https://www.tjal.jus.br/comunicacao2.php?pag=verNoticia¬=16263. Acesso em 06 jul. 2020.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE ALAGOAS. Disponível em:
https://www.tjal.jus.br/?pag=consultas/resolucao. Acesso em 06 jul. 2020.
VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt: Sócrates e a questão do totalitarismo. Lisboa: Instituto Piaget.
1999.