A fidelidade à
Constituição e os ataques fascistas a Lula.
Por Eugênio José Guilherme de
Aragão
Requisito
para participar, como agente público, do funcionamento das instituições do
Estado democrático de direito é a íntima convicção sobre o dever de
respeitar e fazer respeitar a Constituição da República. Essa vinculação, mais
do que no plano formal, no plano ideológico, de sua cosmovisão, ao valor
jurídico e político da Constituição é o que se chama na doutrina alemã
“Verfassungstreue” – ou fidelidade, lealdade à Constituição.
É
assustador verificar que alguns atores-chave de nosso Estado não têm clara
noção sobre seu lugar no mapa constitucional e, se confundem esse lugar, fica
difícil dizer que podem ser leais à Constituição.
A presidenta do STF, por exemplo. Em entrevista ao Sistema Globo disse que
seria papel do judiciário “combater a corrupção”. Nada mais equivocado do que
essa afirmação. O papel do judiciário num Estado de Direito não é “combater”,
mas, sim, uma vez provocado, zelar por que os que eventualmente decidam
“combater” sejam enquadrados na lei quando atravessam os limites do permitido.
Se o judiciário se confunde com os “combatentes”, quem vai controlá-los?
Teremos um “combate” sem regras e sem limites? Porque de uma coisa já sabemos:
ninguém controla o judiciário brasileiro. Não há, entre nós, freios e
contrapesos aptos a limitar sua atuação quando transborda da jurisdição.
É deveras preocupante que a presidenta do STF aparenta não conhecer o lugar de
seu tribunal na arquitetura institucional do país. E, se o órgão máximo de
controle da constitucionalidade está perdido no cipoal das normas do direito
brasileiro, imaginem o resto!
Não há fidelidade à Constituição possível, onde não há conhecimento dela.
Grande parte de nossa crise é uma crise de legitimidade. A lei maior do Estado,
que deveria dar sentido a suas estruturas e funções, regrar o consenso
fundamental na sociedade e permitir o convívio pacífico dos diversos grupos e
das diversas tendências antagônicas na complexidade pós-moderna, deixou de
significar. Só isso explica como uma senadora da direita do espectro político
institucionalizado se dá ao desplante de aplaudir publicamente a ação violenta
de falta de tolerância de grupos fascistas contra uma liderança nacional como
Lula.
Se o STF ignora seu papel no quadro constitucional, o que dizer dos gorilas
toscos que têm saudade da ditadura militar, de seus torturadores e executores?
O que dizer de meganhas fardados na sedizente polícia militar de Santa Catarina
que riem ostensivamente diante da agressão física a um ex-chefe de Estado com
elevadíssimo índice de popularidade apesar de toda injustiça contra si cometida
por operadores do direito contaminados pela febre fascista?
A volta ao leito da Constituição urge para salvar o Brasil da barbárie, pois
violência chama violência e, sem lei nem legitimidade, as instituições nada
podem, nada valem. Sem o consenso jurídico mínimo, instala-se entre nós a
guerra civil, em que grupos e tendências antagônicas passarão a escolher a
força bruta ao invés do diálogo e do discurso argumentativo para se impor sobre
os adversários.
O sinal mais inquietante desse novo estágio político é o fato de ninguém mais
fazer questão de sequer manter as aparências da autocontenção. Os fascistas
saíram do armário glorificando a mesquinharia, o ódio social e político e a
intolerância aos divergentes. Por sua vez, a justiça de classe se desnuda com o
discurso falso-moralista e seletivo contra os representantes das forças
democráticas. A propósito, lembro-me da advertência de Leon Trotski sobre o
avanço revolucionário: quanto mais perto o embate decisivo, mais claras e
transparentes se tornam as condutas e as opiniões das classes em confronto. Só
na democracia liberal se cultiva a disciplina verbal como forma de escamotear
conflitos latentes. Quando essa decai, a escamoteação se desfaz e os monstros
se apresentam sem disfarces.
Talvez estejamos na undécima hora para o STF dar o exemplo de altivez e autoridade
e fazer cumprir a Constituição, mostrar lhe ser fiel, a começar por suas
garantias fundamentais, como a que estabelece a presunção de inocência dos
acusados até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Somente será
bem sucedido se lograr bloquear a prematura violência contra Lula que inspira
as outras violências, físicas e verbais, partidas de quem não respeita à
Constituição, não respeita o STF e a este, prefere, porque conveniente para dar
guarida a seus abusos, um juizinho de província exibicionista, sem eira nem
beira, a quem ostensivamente falece qualquer respeito e, que dirá, fidelidade à
lei maior.
É essa atitude que brasileiras e brasileiros democráticos e amantes da paz
esperam do STF. Ainda é tempo de fazer seu dever de casa, mas as horas se
esvaem rapidamente na tempestade de intolerância política criminosa e
organizada daqueles que têm desprezo e ódio pela Constituição cidadã. Parece
que estão esperando um corpo, um mártir, apenas, para projetar o País do
precipício para a incerteza da aventura.
Definitivamente, não merecemos isso. Não merecemos que forças sem nenhum
compromisso com o Estado democrático de Direito nos retirem toda a esperança
numa solução parcimoniosa, justa e, sobretudo, constitucional para a crise que
criaram para desempoderar a sociedade e reinstalar a ditadura.