Uma
luz na noite sem estrelas do Brasil atual
Por Miguel do Rosário
28/10/2016
O voto de
Luiz Fux, na votação de ontem sobre o direito de greve do funcionalismo
público, não deixou dúvidas de que os ministros aderiram ao golpe de maneira
muito consciente e determinada. Fux não escondeu o raciocínio: "na atual
situação do Brasil, muitas greves virão. Estamos aqui para evitar que o Brasil
pare".
É uma
dessas frases lapidares, de altíssimo valor histórico, similar ao "às
favas com os escrúpulos", de Jarbas Passarinho, e ao "primeiro
fazemos o bolo crescer, para depois dividirmos", de Delfim Netto.
Fux
admitiu que o STF prejudicou o direito de greve do funcionalismo público com
objetivo explícito de enfraquecer a força política dos setores mais organizados
da classe trabalhadora, todos em luta contra o processo de retirada de direitos
inaugurado pelo golpe.
Sou crítico
à greve do funcionalismo público. Assim como sou crítico a muitos clichês
esquerdistas que eu considero simplesmente formulações mal feitas.
Entretanto,
a questão da greve no serviço público era uma coisa que já vinha sendo
discutida no legislativo, com debates abertos e transparentes. Na verdade, a
Constituição Brasileira já permite que o judiciário corte o salário de
grevistas em alguns casos, e há várias regras, distintas para as diferentes
categorias, que devem ser seguidas pelos servidores, de maneira a preservar o
direito do cidadão ao atendimento.
A decisão
do STF é uma demonstração de autoritarismo, como quase tudo que tem vindo de
lá.
Recentemente,
Ricardo Lewandowski disse numa palestra que o século XXI seria o século do
judiciário, assim como o século XIX teria sido do legislativo e o século XX do
executivo. O Nassif fez uma crítica e Lewansowski ligou para o blogueiro para
explicar sua posição.
O
ministro Luis Roberto Barroso seguramente deve concordar com Lewandowski, pois
também tem rodado os salões repetindo uma coisa parecida, o de que o STF
representaria uma espécie de vanguarda.
A frase
de Lewandowski é uma estupidez, um lugar comum idiota, uma filosofia de boteco
sujo, uma besteira sem nenhum valor científico.
Aconteceu
alguma coisa muito grave no Brasil. Jogaram algum tipo de tóxico na água bebida
por nossa casta jurídica, que faz com que até mesmo os seus representantes mais
ilustres se deteriorem intelectual e moralmente,
Se há
algum sentido falar em século do judiciário seria para criticar profundamente
essa aberração, e não festejá-la.
Quando se
fala que o século XX foi do Executivo, por exemplo, o sentido moral a ser
extraído de tal afirmação não deveria ser sob a forma de uma profunda crítica a
um modelo que produziu os maiores massacres da história da humanidade?
Se o
século do Legislativo testemunhou, no auge da revolução industrial, a mais
desumana e brutal exploração da mão-de-obra, e o século do Executivo foi um
tempo de ditaduras e guerras, o século do Judiciário caminha para se tornar uma
era de golpes brancos, autoritarismo disfarçado e Estado policial.
Lewandowski
é outra decepção. Ele é a prova viva de que não adianta apenas, para um
presidente da república, indicar ministros do Supremo. Por melhores que eles
sejam, e por mais garantias que possuam, eles permanecem vulneráveis às
investidas da mídia. De uma forma ou outra, todos são cooptados e corrompidos.
Os vaidosos ganham prêmios. Os tímidos são intimidados. Os corruptos são
comprados.
Evidentemente,
é muito mais barato para as elites cooptarem alguns ministros do que seu
candidato obter mais de 54 milhões de votos.
O governo
teria de indicar ministros, mas investir também num sistema de comunicação que
não os abandonassem no meio da floresta, cercados pelas bestas-fera da mídia,
que é o principal partido político da direita brasileira. Não basta indicar
ministros. É preciso protegê-los da cooptação midiática.
O direito
de greve do funcionalismo público deveria ser regulamentado via congresso
nacional, através de um debate com representantes das categorias. Com sua
decisão, o STF não apenas promoveu um retrocesso no campo dos direitos sociais,
que prejudicará os pequenos servidores na base da pirâmide do serviço público.
Ele também deixou claro que, para o golpe, interessa apenas o atendimento aos
interesses da pequena casta de nababos encastelada na sua pontinha superior.
Ainda
ontem, uma comissão no Congresso aprovou um projeto de medidas enviado pelo
próprio governo que dará, entre outras coisas, em plena crise fiscal, aumento
de 37% aos delegados de polícia federal.
A conta
do golpe está sendo paga às custas do sacrifício da imensa maioria da população
brasileira. Uma casta jurídica se descolou completamente do interesse da
população, agora vista como um inimigo a ser combatido. Mas os seus interesses
de casta, eles sim, estão sendo atendidos.
Nesse
contexto de direito penal do inimigo, ainda vemos a atual presidenta do STF,
ministra Carmen Lucia, convocando reunião para discutir segurança pública com
agentes do exército.
José
Serra é mencionado numa delação da Odebrecht de ter recebido caixa 2 numa conta
da Suíça. Para a imprensa, porém, não vem ao caso. O que importa são os
pedalinhos de Lula sobre os quais não pairam nenhuma prova de que foram
comprados com dinheiro sujo.
Na Carta
Capital, a matéria de capa repercute furo do Cafezinho sobre a nova política de
publicidade federal do governo Temer: às corporações de mídia, tudo; aos outros
nada.
O golpe é
uma noite sem estrelas.
No meio
de um breu tão absoluto, a luta dos estudantes das escolas públicas contra as
reformas autoritárias do governo Temer emerge como um facho tão brilhante que,
por um segundo, pareceu iluminar o país inteiro.
O que foi
possível enxergar durante este segundo, tão rápido quanto um relâmpago, não foi
o presente, ainda imerso nas sombras da truculência e autoritarismo de nossas
elites.
Pudemos
enxergar, no entanto, um pouco do nosso futuro. Vimos as novas gerações
determinadas a resistir pelo tempo que for preciso até recuperar seus direitos,
sua esperança e a soberania de todos.
O
discurso de Ana Julia despertou um espírito novo.
Num país
dominado por traidores e covardes, no estado onde se desenvolveu a casta
jurídica mais truculenta, elitista e parcial, nasceu uma delicada e poderosa
flor.
Na voz de
uma frágil e sensível menina de dezesseis anos, o Brasil voltou a reconhecer a
si mesmo. Não somos os brutucus de camisa verde e amarela manipulados pela
Globo. Não somos os violentos que xingam adversários políticos em hospital.
O Brasil
é uma democracia adolescente, frágil, que precisa lutar contra todos os
poderosos do mundo para se consolidar, e que, neste processo de luta, assim
como Ana Julia, aprenderá o que é política, cidadania e liberdade.
Finalmente,
o monstro golpista, com seus juízes, delegados, promotores, barões de mídia,
com seus aliados no imperialismo, encontrou uma força maior do que ele: uma
menina que luta.
O golpe,
dominado por velhos, homens, brancos, ricos, truculentos, cretinos, ignorantes,
encontrou, em Ana Julia, o seu pior adversário: ultrajovem, mulher, mestiça,
simples, inteligente, culta, sensível.
Na voz de
Ana Julia, vislumbramos a nossa vitória.