Com Silvio Tendler,
na
mesma cama
Por José Ribamar Bessa Freire, de Niterói
Colunista relembra um episódio durante seu exílio no Chile, logo depois do golpe militar no Brasil
A velhice nos dá coragem. Por isso,
depois de tanto tempo, ouso confessar, publicamente, sem qualquer pudor e até
com certo orgulho, que o cineastaSilvio Tendler e
eu, na juventude, dormimos na mesma cama.
Sei que dessa forma escandalizo
algumas mentes pudibundas, como a do general-de-exército Renato César Tibau da
Costa. Mas fazer o quê? Não posso continuar ocultando o fato ocorrido há mais
de 40 anos, porque tem testemunha: a doutora Giane Lessa. Portanto, às favas
com os escrúpulos, como disse o coronel Jarbas Passarinho ao aprovar o
AI-5.
Quem é, afinal, o general Renato
César? Em 1964, era apenas um aspirante-a-oficial da arma de Cavalaria, recém
saído da Academia das Agulhas Negras (AMAN). Paraquedista, comandou depois a
1a. Brigada de Infantaria de Selva, em Boa Vista (RR). Agora, presidente do
Clube Militar, ele organizou, em março, uma festa de arromba para comemorar o
aniversário do golpe de 1964. Ou seja, quase meio século depois, o general
queria celebrar a deposição do presidente eleito por voto popular, assim como a
prisão, tortura, morte ou exílio daqueles que se opuseram ao golpe.
A velhice deu coragem também a ele.
Diz o ditado popular que quem não tem Rubicão caça com Guaxindiba. O César de
igarapé, numa gesta épica, cruzou, pois, valentemente, o rio Guaxindiba, em São
Gonçalo, atravessou, incólume, o conturbado trânsito da avenida Rio Branco,
entrou sem nenhum ferimento no Clube Militar e, destemido, sem vergonha na
cara, festejou com frase heroica para a posteridade:
- Alea jacta est.
Os dados lançados eram pura
provocação do general. Essa foi, talvez, sua última grande batalha, se é que
existiram outras. O “inimigo” decidiu zonear a festa do general, considerando-a
como uma afronta à sociedade brasileira e à democracia.
Manifestantes protestaram. Houve
tumulto generalizado e enfrentamento com a polícia. Desacostumado com o
exercício da discordância, o general ficou chateado porque cortaram o seu
barato. Foi até a 5a. Delegacia de Polícia, no Centro do Rio, e exigiu abertura
de queixa-crime contra Silvio Tendler por
“constrangimento ilegal qualificado”.
Batalha do Clube
O cineasta, efetivamente, em mensagem
no you tube, havia apoiado o protesto, como qualquer
cidadão sadio e sensível pode fazê-lo num regime democrático. Mas acontece que
no dia da Batalha do Clube Militar, 29 de março de 2012, ele se recuperava de
uma cirurgia de descompressão da medula.
- Eu estava em casa,
tetraplégico, e eles me acusaram de ter usado paus e pedras na manifestação –
disse Tendler que, nesta última quinta-feira, depois de meses do ocorrido e
ainda com sequelas da operação, foi depor atendendo intimação do delegado.
A cadeira de rodas que o levou até a
delegacia carregava nela 62 anos de vida bem vivida, 40 filmes que dirigiu e
toda sua história: os cursos de cinema que fez na França, os prêmios de público
e da crítica que ganhou em festivais, os troféus nacionais e internacionais, os
milhões de espectadores que viram seus filmes entre os quais O Mundo Mágico dos Trapalhões, Jango
e Os Anos JK e
até mesmo a medalha Tiradentes, condecoração que recebeu da Assembleia
Legislativa do Rio pelos relevantes serviços prestados à cultura.
Ex-presidente da Associação Brasileira
de Cineastas, Tendler atuou em diversas frentes culturais: dirigiu a Fundação
Rio Arte e o Centro Cultural Oduvaldo Viana Filho, foi diretor da TV Brasília,
secretário de Cultura e Esporte do governo Cristovão Buarque no Distrito
Federal e Coordenador de Audiovisual para o Brasil e o Mercosul da
Unesco. Professor de Comunicação Social da PUC-RJ, ele não entrou sozinho na
delegacia. Lá estavam, solidários, algumas dezenas de manifestantes com
cartazes e fotos de desaparecidos políticos.
No final, esse inquérito fajuto não
vai dar em nada, mas não pode passar em branco o topete do presidente do Clube
Militar, que não tomou conhecimento do fim da ditadura.Não sabemos se o general
paraquedista Renato César participou das gloriosas batalhas que aconteceram no governo
militar. Numa delas, narrada por Cony, um general com sua tropa cercou a
Faculdade Nacional de Direito e, num arroubo de bravura, ocupou o território
inimigo: a cantina do Centro Acadêmico Candido de Oliveira (CACO), depois de
prender vários “combatentes do exército adversário”: estudantes imberbes
armados de pau e pedra.
Essa foi uma façanha heroica digna do
outro César depois da campanha do Egito. César, não o Renato, mas o Júlio,
comemorou a vitória arrasadora com a conhecida frase “Veni, vidi, vici” (Vim,
vi e venci). Qual a frase do César de igarapé, o general Renato, depois da
Batalha do Clube Militar, quando foi peitado pelo protesto dos manifestantes?
Podia muito bem ser, num latim de missa capenga:
- Veni, vidi et quod vidi non
credo(Vim, vi e não acredito no que vi).
Festim diabólico
A César o que é de Renato e a Silvio,
o que é de Tendler. Silvio Tendler publicou
carta endereçada ao delegado responsável pelo inquérito, onde afirmou com todas
as letras que era contra a comemoração do “aniversário da tenebrosa ditadura,
que torturou, matou, roubou e desapareceu com opositores do regime”. Protestou
contra sua criminalização: quem deve ser incriminado é quem estava comemorando,
contrariando a determinação da presidenta da República – diz a carta.
O cineasta sugere ao delegado que “procure apurar
se o canalha que prendeu, torturou e humilhou minha mãe nas dependências do
Doi-Codi participou do ‘festim diabólico’. Isso sim é constrangimento ilegal. E
já que se trata de assunto de polícia, aproveite para pedir ao ‘constrangedor
ilegal’ que ficou com o relógio da minha mãe – ela entrou com o relógio no
Doi-Codi e saiu sem ele – que o devolva. É fácil encontrar o meliante.Comece
pelo comandante do quartel da Barão de Mesquita em janeiro de 1971. Já que eles
reabriram o assunto, o senhor pode desenterrar o processo”.
A velhice também deu coragem ao
cineasta, que não é lá tão velho assim. A ele expresso, aqui no Diário do
Amazonas, minha solidariedade. Afinal, ninguém esquece uma cama compartilhada.
Foi assim. Faz alguns anos, uma
doutoranda que eu desorientava, Giane Lessa, me convidou para almoçar num
restaurante com Silvio Tendler, a quem eu não conhecia. Durante o almoço,
descobrimos, surpresos, que nossos caminhos por pouco não se cruzaram: ambos
fomos exilados no Chile e na França, mas ele chegou dias depois de minha saída
desses países.
Tendler perguntou onde eu havia
morado em Santiago. Falei que passei um período na casa do Thiago de Mello e
depois fui para uma pensão. Já quase na sobremesa, ele quis saber o endereço da
pousada:
- Calle Michimalongo – eu disse.
Era muita coincidência, ele havia se
hospedado no mesmo endereço em Santiago, uma rua pequena, quase um beco,
próxima da Av. Vicuña Mackenna com Matta, onde havia umas vinte casas,
uma delas com três quartos com um total de 12 camas. Dona Adriana, a
proprietária, e Juanita, a empregada, foram lembradas durante o nosso almoço.
Finalmente, depois do cafezinho e na hora de pagar a conta, quase se
despedindo, ele perguntou:
- Por pura curiosidade, qual era teu
quarto?
- Aquele que ficava em frente da sala
de jantar.
Foi o mesmo quarto que o abrigou.
- Qual das quatro camas?
- A que estava encostada na janela.
Foi aí que descobrimos: no nosso
exílio, havíamos dormido na mesma cama. Depois que eu sai, ele ocupou minha
vaga. O general Renato César que me desculpe, mas eu não podia deixar passar em
branco essa agressão ao meu colega de cama e de exílio. Afinal, como cantou
Paulo Leminski:
En la lucha de classes / todas las
armas son buenas: / piedras, / noches,/ poemas.
José Ribamar Bessa Freire é
professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e
da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos
Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social
(UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no
Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.
Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins
Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins
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