Relatório coloca imprensa diante do espelho
por Luciano Martins Costa
A apresentação do relatório final da Comissão da Verdade, em
solenidade oficial, marca o momento histórico em que as instituições
brasileiras são colocadas diante da escolha entre consolidar a democracia ou
manter ao relento os fantasmas da ditadura. O destino do documento não é tão
importante quanto as responsabilidades que ele coloca diante da sociedade, num
contexto em que uma parcela da população, ainda que
mínima, se sente encorajada a pedir a volta do regime de exceção.
Os três jornais de circulação nacional,
que conduzem a agenda pública e ancoram os principais temas que circulam nas
redes de comunicação, destacam o assunto em manchete e, em graus variados de sutileza, tratam de desencorajar o passo seguinte, que seria o processo
de punição dos autores dos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de
pessoas colocadas sob sua guarda. A leitura criteriosa de cada um deles revela
que tanto o Globo quanto
a Folha de S. Paulo e
o Estado de S. Paulo prefeririam não ter que lidar com esse legado macabro.
Mas a História, como se sabe, se
desenrola em conjuntos de espirais e de cada uma delas se pode confrontar,
periodicamente, tudo aquilo que não foi resolvido em seu devido tempo. Assim
como a corrupção de hoje reflete a impunidade de antigas falcatruas, a vergonha
que agora atinge algumas entidades do Estado, principalmente as Forças Armadas,
é um reflexo da tentativa inútil de abafar sob o pó do
tempo aquilo que não pode ficar oculto.
Os 377 criminosos apontados pela Comissão
da Verdade representam não apenas o lado mais obscuro do regime deletério, mas
também fazem lembrar aqueles que colaboraram ativamente, passivamente, ou na
sombra da omissão, para que os crimes fossem cometidos com tanta naturalidade
ao ponto de se transformarem em processos quase burocráticos na rotina do
aparato de repressão. Ativa, passiva ou na sombra da omissão, a imprensa tem
sua parcela de responsabilidade, e nesta quinta-feira (11/12) pode-se observar
como cada uma das grandes empresas de mídia reage diante do espelho.
Encarando o passado
Dos três principais diários do País, o
único que evita abordar o assunto em editorial é a Folha de S. Paulo –
que preferiu citar em nota curta o trecho do documento que se refere ao apoio
que parte da imprensa deu ao golpe militar em
1964.
Também há referência ao trecho em que o
relatório acusa a empresa Folha da Manhã de haver
financiado a Oban (Operação Bandeirantes, nome que se deu a um dos grupos do
sistema repressivo) e de ter cedido veículos para suas ações. O
texto reconhece que "em 1964, a Folha apoiou o golpe, como
quase toda a grande imprensa", mas nega que o jornal tenha dado suporte
financeiro ao sistema repressivo ou emprestado carros de sua frota para as
ações ilegais.
Não era necessário haver um esquema
oficial: pelo menos dois dos jornais do grupo eram dirigidos por policiais e empregavam
agentes ligados ao sistema, que faziam jornada dupla, servindo ao jornalismo e
ao aparato do Estado e circulavam à vontade a bordo das peruas Veraneio
pintadas de amarelo.
O Estado
de S. Paulo e o Globo encaram
em editoriais o passado que, confessadamente, prefeririam ver esquecido. O jornal paulista propõe uma forma estranha de
resolver pendências históricas, ao dizer que a Lei da Anistia cobre todos os atos daqueles tempos: "Não se tratava de perdoar
crimes, mas de deixá-los no passado, no âmbito da história", diz o texto. O Globo alinha as
virtudes do relatório, principalmente o fato de iluminar os porões da repressão
e ajudar a "manter viva a memória dos horrores da ditadura", mas
também se manifesta contra o julgamento dos acusados.
De modo geral, o conjunto das reportagens
e trechos do documento citado e comentado pelos três diários contribui para dar
ao leitor uma ideia do que foram aqueles tempos de horror.
Destaque-se o texto em que o Globo reproduz
depoimentos de vítimas que sobreviveram às sevícias, cuja leitura ajuda a
entender a extensão daqueles crimes. Observe-se também que o título escolhido
pela Folha para
a reportagem principal distorce o sentido de justiça, propósito original da
Comissão da Verdade: "Acerto de contas", diz o jornal.
A linguagem jornalística tem dessas sutilezas.
ATENÇÃO:
as palavras e frases na cor vermelha constam originariamente no texto, mas os
destaques são deste BLOGUEIRO.
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