É desonesto não aceitar a diferença entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda a nação para os porões da tortura
Na reação ao relatório da Comissão
da Verdade sobre as vítimas da ditadura, afirma-se que, para ser justo, ele
deveria ter incluído o outro lado, o das vítimas da ação armada contra a
ditadura. Invoca-se uma simetria que não existe. Nenhum dos mortos de um lado
está em sepultura ignorada como tantos mortos do outro lado. Os meios de
repressão de um lado eram tão mais fortes do que os meios de resistência do
outro que o resultado só poderia ser uma chacina como a que houve no Araguaia,
uma estranha batalha que — ao contrário da batalha de Itararé — houve, mas não
deixou vestígio ou registro, nem prisioneiros. A contabilidade tétrica que se
quer fazer agora — meus mortos contra os teus mortos — é um insulto a todas as
vítimas daquele triste período, de ambos os lados.
Mas a principal diferença entre um
lado e outro é que os crimes de um lado, justificados ou não, foram de uma
sublevação contra o regime, e os crimes do outro lado foram do regime. Foram
crimes do Estado brasileiro. Agentes públicos, pagos por mim e por você,
torturaram e mataram dentro de prédios públicos pagos por nós. E, enquanto a
aberração que levou a tortura e outros excessos da repressão não for
reconhecida, tudo o que aconteceu nos porões da ditadura continua a ter a nossa
cumplicidade tácita. Não aceitar a diferença entre a violência clandestina de
contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda a nação para
os porões da tortura é desonesto.
O senador John McCain é um
republicano “moderado”, o que, hoje, significa dizer que ainda não sucumbiu à
direita maluca do seu partido. Foi o único republicano do Congresso americano a
defender a publicação do relatório sobre a tortura praticada pela CIA, que saiu
quase ao mesmo tempo do relatório da nossa Comissão da Verdade. McCain, que foi
prisioneiro torturado no Vietnã, disse simplesmente que uma nação precisa saber
o que é feito em seu nome. O relatório da Comissão da Verdade, como o relatório
sobre os métodos até então secretos da CIA, é um informe à nação sobre o que
foi feito em seu nome. Há quem aplauda o que foi feito. Há até quem quer que
volte a ser feito. São pessoas que não se comovem com os mortos, nem de um lado
nem do outro. Paciência.
Enquanto perdurar o silêncio dos
militares, perdura a aberração. E você eu não sei, mas eu não quero mais ser
cúmplice.
Luis Fernando Verissimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Jornalista iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Alegre. É cartunista, tradutor, roteirista de TV, autor de teatro, romancista, poeta, músico, escritor, cronista e dramaturgo
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