Por
que a maconha, menos prejudicial que o álcool, é proibida?
O interlúdio político
e a distância da Paulicéia descontrolada – encontro-me em visita a Teresina,
Piauí, no momento em que escrevo – oferecem possibilidade de uma reflexão
curiosa sobre a cultura brasileira. De onde vêm essas correntes de opinião tão
estridentes e poderosas que conseguem impor seus menores caprichos ao conjunto
da sociedade?
Caso fosse vital para
a esta sociedade que o poder do indivíduo de tomar determinada decisão de
caráter pessoal fosse retirada dessa esfera privada e transferida para a
comunidade, poder-se-ia entender esse contingente amplamente majoritário dos
brasileiros que se opõe à legalização da maconha. Contudo, a decisão individual
de usá-la não afeta a ninguém mais do que àquele que a toma. Então por que
maioria dos brasileiros não aceita que a maconha seja liberada no país, assim
como o álcool?
A liberação da
maconha é defendida abertamente por políticos tão diferentes quanto Fernando
Henrique Cardoso e Lula. O uso recreativo é liberado em algumas partes dos
Estados Unidos e até aqui ao lado, no Uruguai. Os efeitos da erva são
infinitamente mais leves que os do álcool.
Há mais argumentos
pró-liberalização. A tomada de controle por empresas privadas do comércio da
substância geraria impostos e inviabilizaria fabricação paralela por piratas.
Assim como as pessoas preferem determinadas marcas de cerveja, vinho ou uísque,
acabariam preferindo determinadas marcas de maconha.
Não duvidem da
capacidade criativa dos publicitários. Logo, logo a erva seria apenas mais um
produto, com nicho de mercado e níveis optativos de qualidade – que seriam
todos superiores aos atuais, pois traficantes não têm regras de higiene, pureza
e tantas outras que passariam a proteger o consumidor em caso de a maconha vir
a ser fabricada em escala industrial.
Não existe um
argumento lógico para ser contra a liberação da maconha. Talvez não afetasse
muito os “negócios” dos traficantes no médio e longo prazos, pois eles
substituiriam a maconha por outra coisa. Mas, no curto prazo, iria produzir um
forte prejuízo, pois há toda uma “indústria” do tráfico voltada para o comércio
ilegal de maconha e ela estaria em funcionamento sem ter onde colocar sua
“produção.
Aliás, o
“proibicionismo” em relação à maconha vai adquirindo um caráter tão arcaico que
em país socialmente mais desenvolvidos o apoio à liberação da substância vem
crescendo, como na Alemanha. Há cerca de uma semana, o Partido Liberal
Democrata (FDP) alemão votou, com ampla maioria, a legalização da maconha.
Mais uma vez, então,
a pergunta se torna obrigatória: por que, cargas d´água, essa maioria tão
sólida dos brasileiros não aceita, de jeito nenhum, a liberação da substância?
No sábado 23, em São
Paulo, segundo o noticiário, cerca de 4 mil pessoas marcharam da avenida
Paulista até o Centro Velho da cidade em apoio à legalização da maconha. Essas
“marchas da maconha” são quase sempre protagonizadas por jovens, mas todos
sabem que o uso recreativo da substância é disseminado por todas as classes
sociais, regiões do país e faixas etárias.
Os mais velhos e mais
empregados acabam resistindo mais a defender uma prática que, no Brasil,
“queima o filme”. Uma pessoa que participe de marcha da maconha e poste fotos
de sua participação no Facebook corre o risco de não conseguir emprego ou até
perdê-lo. Isso sem falar em reflexos com seu círculo de relações sociais, caso
não seja tão “liberal”.
Mas se você bebe até
ficar falando “mole” e andando em ziguezague, mesmo o mais conservador dos
conservadores dará um sorrisinho cúmplice e comentará que você passou “um
pouco” da conta – muitas vezes, mesmo que entre em um veículo e saia dirigindo.
Por que? Porque “todo mundo” bebe; uns mais, outros menos.
Uma pesquisa de
opinião recente, porém, explica, com razoável margem de sucesso, por que a
sociedade brasileira prefere manter o uso da maconha quase que como evidência
de que o usuário é alguma espécie de pervertido, irresponsável, capaz de fazer,
do nada, as maiores barbaridades. As pessoas estão desinformadas sobre a
maconha. Acalentam conceitos ultrapassados e distorcidos, fortalecidos por
chavões que repetem pavlovianamente.
Em setembro do ano passado, em plena campanha eleitoral, pesquisa Ibope revelou que 79% dos eleitores
brasileiros eram contra a descriminalização da maconha e apenas 17% eram
favoráveis. Um placar semelhante envolveu a questão do aborto: 79% eram
contrários à legalização e 16%, a favor. A maioria — ainda que por margem não tão
larga — também rejeitava o casamento gay: 53% a 40%.
Como se vê, uma
maioria avassaladora dos brasileiros faz questão de manter controle sobre
questões da esfera privada de decisão do indivíduo. As pessoas poderem fumar
maconha, fazer aborto ou oficializarem relação amorosa com pessoas do mesmo
sexo é uma decisão pessoal que a maioria do nosso povo quer manter como decisão
coletiva sobre a vida íntima de cada um.
O Senado Federal
divulgou dados mais aprofundados sobre a opinião dos brasileiros relativa à maconha.
Esse estudo mostra de onde vem essa posição equivocada da maioria: da
desinformação. As pessoas pensam, por exemplo, que maconha faz mais mal do que
o álcool. E a maioria esmagadora não conhece ninguém que usa maconha – ou pensa
que não conhece, pois quem usa não revela.
Confira, abaixo, os
gráficos
Alguns dirão que a
questão da maconha é lateral. O Brasil pode muito bem conviver com isso.
Liberar a maconha não vai acabar com o tráfico. Só que é bem diferente.
Enquanto a maconha
não for liberada, as pessoas continuarão procurando bocas-de-fumo, onde outras
drogas acabarão lhes sendo empurradas. E ainda correrão risco ao se
relacionarem com criminosos.
Mas se mesmo assim
você achar que a discussão sobre a liberação da maconha não é tão importante,
entendamos que essa postura sobre o uso da substância se insere em um contexto
bem maior.
A mesma forma de ver
as coisas que leva as pessoas a quererem manter a maconha ilegal as leva a
rejeitar, por exemplo, que uma mulher que não tem condições físicas, mentais,
financeiras ou todas juntas para ter um filho possa interromper uma gravidez
que agravará os problemas sociais do país não só para quem terá o filho, mas
para este, pois nascerá sem ninguém que cuide responsavelmente de si e acabará
jogado pelas ruas, onde a chance para pular para o crime ou para a mendicância
será imensa.
A ignorância tem um
alto custo para o país. Sobrecarrega o sistema público de saúde, cria barreiras
sociais injustas e fornece ambiente para o cometimento de crimes (tráfico e
execuções de aborto malfeitas). O atraso cultural é tão ou mais danoso que o
tecnológico.
O ideal seria que os
poderes constituídos empregassem o sistema educacional para dar às próximas
gerações uma visão mais atualizada do mundo, mas, olhando para as forças
políticas que hoje controlam o Legislativo e boa parte do Judiciário, as
esperanças escasseiam. O Brasil terá que trabalhar muito para trazer essa
maioria de seu povo para o século XXI.
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