O médico Jaime Gold foi vítima de outras vítimas
Postado em 22 mai 2015
Da
mesma forma é notícia que uma pessoa seja assassinada na Lagoa Rodrigo de
Freitas, no Rio de Janeiro, muito mais do que duas na Ilha do Governador.
O
peso talvez seja de 5 para 1, com possíveis mudanças em decorrência da idade,
classe social, cor ou profissão.
O
próprio secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Maria Beltrame,
já disse que “um tiro em Copacabana é uma coisa. Na Favela da Coréia é outra”.
A
dor, porém, parece a mesma.
O
que muda é que não há nada com o que não possamos nos acostumar. E nos
acostumamos tanto a saber do assassinato de gente pobre em lugares pobres que
já não há como se espantar.
Por
mais que não aceitemos o que é de hábito como coisa natural, como suplica
Brecht expressamente. “Em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada”, ainda assim.
Não
podemos negar a trivialidade da morte violenta de alguns. E Amarildos e
Cláudias ganham as manchetes vez ou outra apenas quando são assassinados dentro
de sedes da polícia ou arrastados como lixo pelo asfalto. Aí ainda somos
capazes de algum espanto.
Mas
o que choca em casos como o do médico Jaime Gold, morto a facadas durante um
passeio de bicicleta pela Lagoa essa semana, é também o medo de que podia ser
um de nós.
Um
de nós que nunca fomos ou seremos Amarildos, no máximo Charlie Hebdo ou Jaime
Gold.
Que
conseguimos fingir que vivemos em uma bolha segura, enquanto há guerra em toda
parte. Que conseguimos separar nós e eles.
Hoje
a Lagoa amanheceu com centenas de policiais a proteger essa bolha, numa
proporção talvez maior do que em qualquer outra parte da cidade.
As
favelas próximas já foram “pacificadas”, ou ao menos ocupadas pela polícia, o
que reforça a sensação de bolha.
As
linhas de ônibus que vem da periferia são agora o alvo e policiais já
permanecem em posições estratégicas, próximos aos pontos de ônibus, para
revistar elementos suspeitos – identificados principalmente pela cor da pele.
Há inclusive um forte movimento para impedir que uma linha que passa por vários
complexos de favelas chegue direto à Lagoa.
Parece
assim que cada vez mais vivemos um apartheid para hipócritas. Para gente que
gosta de se ver como um cidadão de bem, que espera apenas proteção policial,
vigilância e segregação, ou que sonha em se mudar para a bolha.
Um
apartamento na região, porém, não sai por menos de 1 milhão de reais, e talvez
por isso o morador também se revolte tanto com a violência dentro da bolha,
muito mais do que fora dela.
Afinal,
pagou caro – ou herdou, como na maioria dos casos – para viver em local seguro.
Paga ainda uma fortuna de IPTU, de condomínio, de seguranças privados…
O
suspeito de assassinar o médico Jaime Gold tem 16 anos e já podemos ouvir
também o grito histérico de que com a redução da maioridade penal essa morte
poderia ser evitada. Mas a ficha do suspeito revela também que ele já comete
crimes desde criança.
Podem
dizer então que alguns são maus desde o útero, como é do feitio de quem gosta
de respostas fáceis. O curioso é que esses “maus”, em sua imensa maioria,
cresceram na miséria e as penitenciárias e reformatórios são em geral depósitos
de traficantes pobres, ladrões, assassinos e estupradores pobres. Então o
argumento da vez é de que muitos também crescem na pobreza e não se tornam
criminosos.
Mais
curioso ainda é que em países em que a miséria não existe ou as desigualdades
são muito menores, os índices de criminalidade sejam baixíssimos. Na Islândia,
a polícia matou pela primeira vez ano passado.
Vigiar
e punir cada vez mais, e cada vez mais jovens, é então a tentativa mais
estúpida possível de resolver o problema, ao agir apenas sobre a conseqüência.
Na
relação entre políticas históricas absurdas, riqueza excessiva, pobreza e
criminalidade, combater o último ponto, sem defender medidas radicais de
combate também à desigualdade, é enxugar gelo, é querer se vingar de crianças e
não fazer justiça, é chocar o ovo do fascismo.
É
o discurso de segurança pública mais fácil e a solução mais rasteira, a
promessa mais fácil de ser compreendida, e por isso rende votos. Por isso se
mantém.
Mas
o ponto central de tudo, como escreveu o advogado e blogueiro Eduardo Goldemberg,
é que o médico Jaime Gold foi vítima de outras vítimas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário