Francisco,
o papa verde
por Claudio Bernabucci — publicado 27/06/2015 07h31
A nova encíclica de Francisco critica a degradação humana e ambiental e os privilégios ao setor financeiro
Filippo Monteforte/AFPA destruição da natureza e a miséria tem a mesma raiz, destaca texto da suposta encíclica
A encíclica ambientalista do papa Francisco era aguardada com muita expectativa por amigos e inimigos. A apresentação oficial, na quinta-feira 18, na sala do Sínodo no Vaticano, foi prejudicada pelo vazamento do conteúdo ao semanário italianol’Espresso. No blog mantido pelo vaticanista da revista, uma versão aparentemente integral do documento foi publicada três dias antes. Com frontispício papal original, um texto de 191 páginas dividido em seis capítulos e 246 parágrafos, a encíclica intitulada Laudato si’, sobre o cuidado necessário com a casa comum, acabou divulgada para o mundo inteiro dessa maneira surpreendente e um tanto rocambolesca. Iniciativa simplesmente “incorreta”, como denunciou o serviço de imprensa da Cúria, ou maliciosa manobra inspirada pelos inimigos de Francisco?
Inevitavelmente, os órgãos oficiais do Vaticano manifestaram grande irritação e negaram se tratar do texto final, mas, poucas horas depois, ambientes próximos do papa deixaram vazar algumas palavras do pontífice imbuídas do objetivo de aliviar o clima. Com a costumeira ironia, Francisco teria comentado: “O rascunho é quase idêntico ao original... mas tanto faz: vocês sabem que eu gosto de bagunça”. De todo modo, a seráfica reação do papa não evitou que o incauto jornalista italiano, Sandro Magister, tivesse seu nome retirado sine die da lista de vaticanistas “com credibilidade”.
Conforme sublinhado durante a apresentação oficial, nunca houve uma espera tão intensa e prolongada por um documento particular da Igreja. Justificável. A Laudato si’ é uma obra que nasce para deixar uma marca fortíssima não só em âmbito religioso. Tamanha é a sua profundidade espiritual, amplitude cultural e contundência política que o debate sobre os rumos do planeta neste século não poderá prescindir dela, seja para apoiá-la, seja para combatê-la.
A encíclica (do latim encyclios, que significa circular, que abraça tudo) começa com a reprodução de um trecho de um texto de São Francisco de Assis, considerado o patrono dos ambientalistas: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”. A partir dessas palavras iniciais do Cântico das Criaturas, a primeira obra literária da língua italiana, o santo de Assis celebrava poética e espiritualmente a maravilha da Criação. Na sequência o papa lembra que o gênero humano compartilha uma casa comum, que, como mãe amorosa e bela, “nos acolhe em seus braços”.
A dimensão contemplativa e espiritual, própria dessa dedicatória, deixa logo espaço à inspiração pastoral dirigida ao bem e à justiça, com clara influência da Teologia da Libertação. Em nova referência a São Francisco, o papa lembra: “Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior”. Na linha do compromisso integral, a encíclica não se dirige só aos cristãos, pois todos moramos na “nossa casa comum”.
Francisco, o papa, recorda que sua peculiar sensibilidade ao meio ambiente não é uma novidade para a Igreja, mas é filha da atenção dedicada por vários antecessores à questão. Digna de menção é a homenagem ao patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu, a quem é implicitamente reconhecido um papel de precursor, por ter afirmado em 1997 que “um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus”.
Surpreende positivamente o estilo da encíclica, a primeira completamente inspirada e escrita pessoalmente por Francisco. Linguagem simples e fresca, que permite fácil compreensão de questões complexas e enfrenta com terminologias laicas os principais problemas contemporâneos.
O primeiro dos seis capítulos apresenta uma análise da atual crise ambiental, com a finalidade de assumir os melhores frutos da pesquisa científica e oferecer uma base concreta para o percurso ético e espiritual posteriormente traçado. A argumentação fundamental é de que a civilização moderna, ao distorcer a correta interpretação das Escrituras, tem exaltado a missão humana de dominação da natureza e esquecido a dimensão da custódia. Portanto, a primeira tarefa à qual Francisco se propõe é a de desmitificar essa visão, acabar com a confiança irracional nas capacidades humanas desmedidas e com a ilusão do progresso infinito, desmentido, aliás, pelas mais recentes descobertas da ciência.
Segundo o papa, falar de poluição e mudança climática, ou de perda da biodiversidade, significa não só focalizar os abusos cometidos contra a natureza, mas refletir sobre a cultura do descarte ou evidenciar que as primeiras vítimas desses fenômenos são os pobres. Ao mesmo tempo, escreve, o “acesso a água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas”. Nítida, por consequência, a oposição a todas as formas de privatização da água.
Uma breve síntese do documento permite ressaltar que a ideia de uma ecologia integral é o recado central de Francisco. Esse conceito é repetido inúmeras vezes no texto e dá nome ao quarto capítulo. “É fundamental”, anota Bergoglio, “procurar soluções integrais que levem em conta as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais.
Não existem duas crises separadas, a ambiental e a social, mas uma só e complexa crise socioambiental.” Degradação do meio ambiente e pobreza são os dois lados da mesma moeda.
A ecologia integral inclui os variados componentes da vida humana e considera a interconexão entre todos os fenômenos (“tudo é intimamente relacionado”). O passo para enfrentar os desafios cruciais da contemporaneidade é breve: “A política não deve se submeter à economia, e esta não deve se submeter aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje é imperioso que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente a serviço da vida humana. A salvação dos bancos a todo custo, fazendo a população pagar o preço, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois de longa, custosa e aparente cura”.
O texto também enfrenta com espírito radicalmente crítico questões como a crise do antropocentrismo moderno, a cultura do relativismo prático ou a necessidade de se defender o trabalho e de uma parte da humanidade aceitar o decrescimento, só para citar as questões mais delicadas.
Foi o suficiente, porém, para desencadear imediatas reações de hostilidade contra o papa. Desde a divulgação oficial da encíclica, cardeais conservadores norte-americanos espumam de raiva, enquanto mais abertamente o senador republicano de Oklahoma, James Inhofe, conhecido negacionista da existência e dos efeitos do aquecimento global, convida o papa a “se ocupar dos seus problemas”. Jeb Bush, o terceiro integrante da família a aspirar à Presidência da República nos Estados Unidos (o pai e o irmão conseguiram), comentou lapidarmente: “Não vou receber ordens do pontífice”.
Graças à involuntária ou cúmplice colaboração de quem adiantou a divulgação do texto, os inimigos da visão humanista de Francisco puderam se manifestar até antes da publicação da encíclica. Foram só as primeiras escaramuças da batalha. Esperam-se ataques furibundos no futuro próximo. Pela estirpe dos críticos, o papa acertou em cheio.
*Reportagem publicada originalmente na edição 855 da Revista CartaCapital, com o título "O papa verde"
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