PROTESTO SEM HIPOCRISIA,
POR FAVOR
POR FAVOR
PAULO MOREIRA LEITE
Política, opinião e cultura em parceria com Brasil 247
Num continente onde o racismo está em alta, denuncia do ataque ao Charlie Hebdo não pode alimentar a clássica postura de duplicidade moral
Diante das manifestações cada vez
maiores nas ruas de Paris para protestar pelo massacre na redação do Charlie
Hebdo é preciso lembrar que:
1. Durante os
ataques mais recentes da aviação de Israel sobre Gaza, os protestos em
solidariedade a população palestina foram reprimidos na França porque se
considerou que poderiam se transformar numa ameaça a ordem pública;
2. Cartunistas e
ilustradores solidários com a causa árabe em Israel chegaram a ser processados
pelo Estado. Questionado, o primeiro ministro Manuel Valls se justificou: “Nós
deveríamos ficar de braços cruzados diante da criatividade do ódio?”
3. Em 2006, um
grupo de intelectuais de prestígio na mídia assinou um manifesto anunciando a
aparição de uma quarta forma de ditadura dos tempos modernos. Depois do
nazismo, do fascismo e do estalinismo, o manifesto falava do islamismo — que
não é uma doutrina política, mas uma religião, que mobiliza perto de 1,5 bilhão
de pessoas, ou um quarto da humanidade, reunindo homens e mulheres com
diferentes visões de mundo e costumes bastante diversos.
Benvindo à
duplicidade moral do século XXI.
O morticínio na
redação do Charle Hebdo foi uma operação cruel e injustificável. Nenhum
cidadão, em parte alguma do mundo, deve perder a vida em função de suas
opiniões. O fato do assassinato coletivo ter sido um crime premeditado, sem dar
chance de defesa às vítimas, apenas reforça seu aspecto perverso, inaceitável.
Nada disso nos
proíbe de lembrar que o direito de Charlie Hebdo expressar o ponto de vista de
seus jornalistas e cartunistas sem restrições não deve ser confundido com a
sustentação de suas opiniões políticas. A expressão “somos todos Charlie” pode
gerar muitas confusões.
Num esforço
supostamente didático, surgiu no país a conversa que tenta comparar Charles
Hebdo e o Pasquim, o inesquecível jornal de humor feito no Leblon que chegou a
vender 200 000 exemplares por semana durante a ditadura militar. É bom não
exagerar nas primeiras impressões.
Estamos falando
de publicações satíricas, dedicadas ao humor político. Podemos encontrar
artistas geniais, nos dois lados do Atlântico. E só.
Mas ninguém tem
o direito de iludir-se com puras formalidades nem ignorar o ponto essencial.
O Pasquim tinha
lado. Extraia sua força de uma opção política clara: denunciava o regime
militar e seus inimigos. Não fazia concessões nem permitia dúvidas a respeito.
Não era um humor sem causa. Muito menos com a causa errada. Estava ao lado dos
mais fracos.
No universo
cultural europeu do século XXI, Charles Hebdo construiu uma relação ambígua com
o racismo.
Assumindo aquela
visão que classificava o islamismo como o quarto totalitarismo, o próprio
editor da Charlie Hebdo disse que, para a revista, tanto o fascismo da Frente
Nacional, a organização de extrema-direita francesa, como o que chamava de “fascismo
islâmico” fazem parte da “mesma seara e contra eles não economizamos nossa
arte”.
O fascismo de
Jean Marie Le Pen — e outros líderes semelhantes que se espalham pelo Velho
Mundo — tem um projeto de poder de Estado. É um movimento violento e nostálgico
da velha ordem, que tenta restaurar pela força. Quer eliminar direitos
conquistados, que representam avanços — parciais, limitados — rumo a uma
situação de menor desigualdade. A opção Le Pen é um estado forte para submeter
os deserdados da globalização a leis mais duras e severas, como mão de obra de
segunda-classe — seja em casa, seja em seus países de origem.
O clero
muçulmano mantém convicções que podem ser ou parecer retrógradas. Como em todas
as religiões organizadas, seus líderes podem ser acusados de exercer o poder de
forma autoritária.
Ali se encontram
círculos fascistas — que também se manifestam no extremismo católico. Em julho
de 2011, em Oslo, 76 pessoas morreram em dois atentados cometidos por um
fundamentalista cristão, adversário assumido da imigração islâmica, admirador
fanático do Estado de Israel.
Não há dúvida de
que lideranças muçulmanas participam da resistência política e cultural de uma
população segregada e diminuída em seus direitos, em particular no Oriente
Médio, onde a atuação do Estado de Israel junto a seus vizinhos — e à própria
população árabe no interior de suas fronteiras — contribui para criar um
ambiente de enorme tensão em todo planeta.
Este é seu papel
na cena global, sem relação com o fascismo de Jean Marie Le Pen. É por isso que
são atacados. É por isso que o deboche é estimulado. Devem ser desqualificados
— da mesma forma que, nos tempos do Pasquim, a ditadura lançava insinuais
odiosas sobre a vida pessoal de lideranças da Teologia da Libertação.
O racismo é um
antigo componente da cultura européia e é possível encontrar suas manifestações
mesmo em textos de sábios insuspeitos do iluminismo. Mas há uma novidade
recente.
Com o progresso
científico, as nações que dividiam a humanidade em raças biologicamente
inferiores e superiores deixaram de fazer sentido para as camadas mais cultas.
Está comprovado
que nenhuma herança genética é capaz de explicar as diferenças de
desenvolvimento entre povos e países. Surgiu, então, o fator cultural.
Procura-se
definir uma hierarquia entre homens e mulheres pela visão de que há uma
hierarquia entre culturas. Algumas seriam mais adequadas do que outras para
promover o progresso social, que não seria produto de opções de natureza econômica
e política, mas dos valores tradicionais de cada povo.
Foi assim que se
passou a explicar a hegemonia política-militar dos EUA em todo planeta pelos
valores morais da religião protestante — embora outros povos, com os mesmos
valores morais e religiosos, pudessem padecer de uma condição muito diferente.
Ou a falta de desenvolvimento de países tropicais pela falta de amor ao
trabalho duro de seus cidadãos — ainda que a jornada de trabalho de muito
desses povos pudesse ser mais prolongada e estafante. E assim por diante.
O fator cultural
encontra-se no eixo teórico do artigo ”Choque de Civilizações”, de Samuel
Huntington. Publicado em 1993, ele construiu um novo quadro ideológico para
justificar a atuação das grandes potências após a queda do Muro de Berlim e o
fim da Guerra Fria — quando, mais uma vez, era preciso manter a hierarquia
entre povos e países, dominantes e dominados.
Para Huntington,
todo esforço para criar um ambiente de convívio harmônico e cooperativo entre
os povos, com respeito a pluralidade e a história de cada um, nada mais seria
do que uma utopia risível, pois não há uma herança comum entre elas. “As
diferenças entre as civilizações não são apenas reais; são fundamentais”,
escreve, para acrescentar: “não vão desaparecer em pouco tempo. São muito mais
essenciais do que as diferenças entre ideologias e regimes políticos.”
Ele reconhece
que “diferenças não significam conflito, e conflito não implica necessariamente
violência,” mas adverte: “ao longo dos séculos, as diferenças entre
civilizações geraram os conflitos mais violentos e prolongados.”
Dividindo a
humanidade em oito civilizações diferentes, Huntington enxerga um ambiente
hostil para o chamado ocidente, cada vez mais ameaçado pelo progresso de outros
povos de outras culturas. Nesse ambiente de risco, onde a posição de predomínio
se encontra ameaçada, o “Ocidente (com maiúsculas)” está condenado a “manter o
poderio econômico e militar necessário para proteger seus interesses” diante
das demais civilizações.
Quem leu Edward
Said já aprendeu a importância de estereótipos negativos sobre os povos árabes
para consolidar um domínio de caráter imperialista naquela parte do mundo que
abriga as principais reservas mundiais de petróleo, a principal riqueza
estratégica dos últimos 100 anos.
Quem ler “O que
a Europa deve ao Islam de Espanha”, de Juan Vernet, poderá descobrir a
formidável contribuição dos povos árabes para a magnífica explosão cultural do
Renascimento — e todas suas consequências — que muitas pessoas acreditam ter
sido uma obra pura de artistas e intelectuais europeus.
A questão
encontra-se aí.
A execução à
bala da redação do Charlie Hebdo é inaceitável.
A tentativa de
criminalizar o islamismo por este crime também é inaceitável. Lembra as piores
tentativas de manipular consciências e reforçar preconceitos que
inevitavelmente irão gerar novas tragédias.
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