A mídia brasileira está usando o sangue do Charlie em causa própria
Postado em 13 jan 2015
Um jornalista britânico
pergunta, no Independent, se haveria a mesma comoção se o atentado contra o
Charlie Hebdo tivesse como alvo uma publicação de extrema direita.
Respondo
com uma pergunta.
Alguém
consegue imaginar uma marcha, no Brasil, que congregue pessoas emocionalmente
arrasadas que segurem cartazes que digam: “Sou a Veja?” Ou mesmo: “Sou a
Globo?” Ou ainda: “Sou a Folha?”
Ou
indo para pessoas físicas. Feche os olhos e veja multidões com cartazes assim:
“Eu sou Jabor”. Ou: “Eu sou Merval”. Ou: “Eu sou Reinaldo Azevedo”. Ou:
“Eu sou Sheherazade”.
A
direita tem poder e dinheiro, mas não comove ninguém. Não muito tempo
atrás, festas nas ruas celebraram na Inglaterra a morte de Margaret Thatcher.
Testemunhei
uma delas, em Trafalgar Square, berço da majestosa coluna de Nelson, o
almirante que impôs a primeira grande derrota à França de Napoleão.
As
grandes empresas de jornalismo do Brasil e seus porta-vozes – os reais chapas brancas da mídia — são o exato oposto do Charlie. Defendem um mundo de
privilégios que provocava vômitos mentais nos cartunistas mortos.
Isso
não tem impedido a mídia brasileira de usar a tragédia do Charlie, cinicamente, em causa própria.
O
sangue dos cartunistas franceses vem sendo utilizado sobretudo para barrar a
discussão em torno da regulação da mídia no Brasil.
A
liberdade de expressão pela qual morreram os jornalistas do Charlie seria,
aspas, e pausa para uma gargalhada, ameaçada pela regulação.
Já
que falamos de Nelson, evoquemos também Wellington, o herói inglês de Waterloo:
quem acredita nisso acredita em tudo.
A
“liberdade de expressão” pela qual se batem as empresas jornalísticas
brasileiras pode ser resumida assim: vale tudo para defender os próprios privilégios.
Você
pode assassinar reputações sem prova e sem consequências jurídicas. Você pode
usar concessões públicas como rádios e tevês como arma de propaganda contra
ideias e pessoas que representam ameaças, reais ou imaginárias, às mamatas.
Você pode concentrar o direito à opinião em quatro ou cinco famílias. Você pode
formar monopólio impunemente.
Você
pode tudo, em suma – e sem contrapartida. Numa disputa com dois barões da mídia
na década de 1930, o então premiê britânico Stanley Baldwin produziu uma frase
ainda hoje amplamente citada no Reino Unido.
Depois
de dizer que os jornais de ambos eram na realidade “máquinas de propaganda”
para servir a interesses pessoais, e não públicos, Baldwin afirmou: “O que os
donos desses jornais querem é poder, mas poder sem responsabilidade, coisa
que no correr dos tempos tem sido o atributo das marafonas.”
De
Baldwin para cá, a opinião pública inglesa esteve constantemente vigilante em
relação aos barões da mídia.
O
último deles, Rupert Murdoch, virou um pária social depois que os ingleses
souberam os métodos que um jornal seu empregava para obter furos.
Sob
a fúria da opinião pública, Murdoch foi obrigado a fechar o jornal, e jamais
voltou a ter um vestígio do poder e da influência que tivera na Inglaterra.
Ainda
em consequência do escândalo, a Inglaterra se pôs a discutir, prontamente, uma
nova regulação da mídia. Os detalhes finais estão sendo elaborados, mas
essencialmente foi decretado o fim da auto-regulação por ter se provado
pateticamente ineficaz.
No
Brasil, não chegamos ainda, neste terreno, aos anos 1930 de Baldwin.
Que
presidente brasileiro ousou dizer a barões – e à sociedade, principalmente — as
verdades que Baldwin disse?
Diversos
ocupantes do Planalto não apenas silenciam como patrocinam os
barões com o Bolsa Imprensa, o dinheiro público farto e constante que sempre
abastece as grandes empresas na forma de publicidade federal.
É
esse estado de coisas que a mídia está defendendo mais uma vez, com o caso do
Charlie – e não, não e ainda não a “liberdade de expressão”.
ATENÇÃO: as palavras na cor vermelha
constam originariamente no texto, mas os destaques são deste BLOGUEIRO.
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