A agressão contra um coronel da PM em
SP inverte a lógica dos protestos de junho, baseada no asco à brutalidade
Geoff Mock/Flickr
A agressão contra um coronel da PM em SP inverte a lógica dos protestos:
como apoiar quem age (ou atrai quem age) exatamente igual àqueles que dizem
combater?
A agressão
praticada por um civil não é menos covarde do que a praticada por um militar.
Agressão é uma atitude covarde e ponto. Ela provoca estragos diferentes, mas
não deixa de ser agressão. E o argumento de que para cada ação há uma reação
vale para a física, nunca para humanos.
Em meados de
junho, quando boa parte da população engrossou o coro aos primeiros
manifestantes que foram às ruas em São Paulo, era possível encontrar todo o
tipo de grito no meio da multidão. Se havia um em comum na polifonia era: “não
toleramos mais violência; não queremos ser agredidos quando tomamos as ruas
para pedir nossos direitos”.
O próprio papel da Polícia Militar de São Paulo
foi colocado em xeque durante o alvoroço. Não porque ignora-se a necessidade do
combate à criminalidade, como muitos erroneamente tentaram colocar na boca dos
rebeldes, mas porque não se tolera o uso desproporcional da força em qualquer
situação. Este asco à brutalidade, exposto nos protestos e tantas vezes
debatido aqui, não é outro elemento se não a matéria-prima do sentimento que
levou a maioria das pessoas às ruas nas principais cidades do País.
As cenas da agressão ao coronel da Polícia
Militar Reynaldo Rossi durante o protesto pela tarifa zero de ônibus na
sexta-feira 25, em São Paulo, são, até aqui, o principal indício de que o
movimento está perdendo o bonde. Desarmado, ele foi cercado por agressores com
paus e pedras, e não foi poupado. Como se, diante da chance, os agressores
esquecessem da bandeira levantada no auge da mobilização quatro meses atrás:
“Sem violência”.
Com os movimentos à flor da pele – em parte
graças à incompetência do poder público em garantir a integridade de quem
protesta, de quem vigia o protesto e de quem não tem nada com o protesto –
parte dos manifestantes agiu exatamente igual àqueles que diziam combater.
Resultado: o militar foi levado para o Hospital das Clínicas, com uma fratura
na clavícula e ferimentos na cabeça. Tornou-se, assim, vítima da insensatez que
as ruas deveriam denunciar.
“Mas a polícia provocou”. “Mas a tensão do
momento não permitia cordialidade”. “Mas essa meia dúzia de agressores não
representa o movimento”. Nenhum dos três argumentos é errado, mas já não serve
para desamarrar uma teia à qual todos, conscientes ou não, agora estão atados.
Se a polícia provocou, foi à espera de um revide; portanto, não revidar deveria
ser o imperativo preliminar. Se o opressor não permite abraço, não abrace, mas
não agrida. Se os agressores não foram pautados pelo núcleo do movimento, o
movimento já deveria ter se distanciado deles há tempos; se a visita é
incômoda, fecha-se a casa a visitas.
A insistência em um método de sinais claros de
esgotamento e a tentativa de justificar o injustificável (de novo: a agressão
de um civil não é menos agressão que a de um policial ou qualquer agente do
Estado) é o que transforma um movimento promissor em um exercício de enxugar
gelo. Depois de junho, a demanda por transporte público mais digno – e, por
consequência, por uma cidade mais humana – foi colocada a ferro e fogo em
pauta. Foi uma vitória acachapante. Às vésperas de uma eleição, é capital
político em estado bruto para obter com todas as letras o compromisso público
de qualquer candidato para o encaminhamento das mudanças aclamadas. Não
faltaria postulante a bater na porta dos movimentos organizados, em alta com a
população, para pedir a benção e oferecer promessas – o cumprimento ou não
seria um problema considerável a longo prazo, quando ainda haveria pólvora a
gastar nas ruas.
Essa pólvora, no entanto, está sendo queimada antes
da hora e em ritmo insustentável. Quando se banaliza a ação, perde-se o norte e
se expõe as contradições ainda enrustidas pelas ruas. Uma delas, a de que as
ruas não são capazes, por si, de oferecer todas as perguntas nem todas as
respostas a que se propõem. No grito, consegue-se muita coisa, é verdade, mas
são nos corredores silenciosos da via pública que são acertadas as decisões que
de fato mudam a vida privada no atacado, e não no varejo. Religiosos,
ruralistas e armamentistas têm direitos e privilégios nos termos da lei não só
porque souberam canalizar recursos e energia para formar suas próprias
bancadas. Foi porque gritaram menos e se organizaram mais. Para competir à
altura, e se quiser garantir amanhã os seus próprios representantes comprometidos
com a catraca livre ou qualquer bandeira de nobre indiscutível, um segundo
salto é necessário agora. Este segundo salto será inviável se a ação for
resumida a um amontoado disperso de reações agressivas a uma agressão
enraizada. Se se resumir a uma disputa contra gigantes, o estado de guerra
estará declarado. Nesse embate, até as catracas do Terminal Parque Dom Pedro II
sabem onde está o lado mais forte da história.
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