CorCordialidade industrial
Cordialidade
Industrial
Como
devemos entender hoje o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda
Em vez da confusão característica entre público e
privado que definia o conceito, hoje o privado se identifica com instituições
industriais
Por: Luiz Costa Lima *
Na atual acepção da cordialidade brasileira, em vez de o adversário político ser hostilizado, ele se torna objeto de ódio e rancor Foto: Jean-Baptiste Debret / Reprodução
* Professor emérito da PUC-RJ
Em 1936, na
abertura da coleção Documentos Brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda intitulava o capítulo V de Raízes do Brasil, de “O Homem Cordial”. Encontrara a expressão no escritor
e amigo Ribeiro Couto. Ao longo do capítulo, explicava que a expressão nos
caracterizava, como “um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável,
absorvente do ninho familiar”, pois “as relações que se criam na vida
doméstica, sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social
entre nós”.
As passagens citadas são
imprescindíveis porque (a) muitos dos comentadores do autor não hesitaram em
considerá-lo prova que o depois celebrado historiador estaria enfatizando um
dado altamente positivo de nossa formação; (b) na verdade, a cordialidade tinha
o papel de ressaltar a rígida separação, em nossa sociedade, entre o público e
o privado. O autor não deixava dúvidas sobre sua consequência negativa: “Armado desta máscara (a
cordialidade) o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”.
Fundada nas relações familiares de que derivava, a cordialidade se estendia até
a área do público, cuja lógica, que antes deveria ser o interesse público, era
com isso sufocada; (c) a distinção se tornará mais efetiva a partir da 3ª
edição do Raízes
(1956), quando ao texto sensivelmente modificado corresponderá o esclarecimento
decisivo sobre a questão da cordialidade.
Tal esclarecimento se
tornara necessário desde que Cassiano Ricardo iniciara seu desentendimento,
tomando-a como sinônimo da nossa bondade (!). Contrapondo-se-lhe, Sérgio
Buarque, ainda que reiterasse em nota seu débito a Ribeiro Couto, acrescentava
passagem de O Conceito
do Político, que Carl Schmitt publicara em 1933, lido no original.
Aí, de maneira inquestionável era diferenciada a inimizade, pertencente à ordem
do privado, assim como a hostilidade, propriedade da ordem do público. O texto
revisto tirava qualquer possibilidade de dúvida: Sérgio Buarque acentuava que
nossas raízes familiares comprometiam a formação consequente de uma ordem
pública entre nós, pois seus agentes, no exercício de seus cargos, agem como se
a população fosse parte do círculo de seus apaniguados.
O esclarecimento acima se
mostra particularmente pertinente neste dia da Independência. Por que? Seria um
desperdício alegar que assim sucedia porque Sérgio Buarque é um intelectual a
que poucos entre nós se igualam. Seu propósito é bem outro. Trata-se de mostrar
que o termo, em vez de manter a estrita acepção inicial – a oposição entre o
público e o privado, a hostilidade versus a manifestação de inimizade como
derivadas da importância primordial da instituição familiar – passa a ter outra
configuração. Para melhor entendê-lo, recordemos que, nos termos do autor, a
oposição entre público e privado significava que nossa política, sob uma capa
de afabilidade, acobertava interesses privados. Mas tal acepção ainda vigora
depois do golpe de 1964? Embora a delação, a tortura, o desaparecimento dos
adversários, já houvessem sido praticados durante o Estado Novo, ainda se
poderia supor que a indiferença e a progressiva hostilidade da população pelo
clima de terror indicavam alguma permanência da velha cordialidade.
Já o que se dá em
consequência do resultado da última eleição presidencial não mais permite
dúvidas. Em vez de o adversário político ser hostilizado, ele se torna objeto
de ódio e rancor. A passionalidade chega ao ponto de as manifestações contra o
governo eleito conterem manifestações em prol da volta da ditadura militar.
Isso não significa que a cordialidade deixou de haver, senão, e apenas, que a
definição dos interesses privados deixou de derivar de raízes familiares. O
privado agora se identifica com instituições industriais, ainda que de origem
familiar. Ponhamos aspas na nova “cordialidade”.
“Cordialidade” industrial,
como assim? É aquela oriunda de instituições que, por sua capacidade de difusão
pública, têm a possibilidade de forjar uma opinião pública. A mudança nada tem
de excepcional. Pode-se mesmo dizer que seria bastante esperável. Tanto antes
como agora temos sido uma população de “ouvintes”, ou seja, em que o hábito da
leitura é reduzido, seja pelo número reduzido dos alfabetizados, seja pela
falta de hábito de ler, pensar e estudar. Por isso os valores antes difundidos
a partir da família se tornaram mais eficazmente transmitidos pela “oralidade”
industrial. Com exceção dos miseráveis, a mídia alcança todas as classes. De
posse de meios de divulgação de massa, os poderosos interesses privados se
tornam mais potentes.
Para isso, têm apenas que saber recrutar colunistas, e entrevistadores dotados de uma oralidade agressiva, na aparência apenas técnica. Em poucas palavras, o 7 de setembro de 2015 está marcado pelo advento da “cordialidade” midiática. Os panelaços aparentemente se esgotam nos protestos contra os desastres governamentais. Não percebem que assim contribuem para que continuemos um país grande apenas no tamanho.
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