Em algumas versões, são lendas que nos levam a
pensar nas consequências práticas das ações presentes, no modo
como determinam nosso futuro no mundo. Em outras, referem-se ao que
nos aguarda no além-túmulo.
Na tradição do catolicismo popular, por exemplo,
temos a crença do encontro da alma com São Pedro, que, zelando
pelas chaves da Porta do Céu, só deixa entrar no Paraíso quem
tiver mantido vida justa na Terra. Quem não, endereça ao Inferno.
Para muitos muçulmanos, o primeiro destino da
alma é determinado nos instantes que sucedem a morte. Chegam os
anjos Munkar e Nakir e a interrogam, fazendo três perguntas: “Quem
é teu Senhor? Quem é teu Profeta? Qual é tua religião?”. Os que
acertam ficam à espera da ressurreição em alegria, os que erram
são torturados até o Dia do Julgamento.
São muitas histórias semelhantes e, em todas, um
mesmo recado: quem faz a coisa certa é recompensado, quem se desvia
paga. Nas labaredas do Inferno.
A ansiedade dos ministros do Supremo Tribunal
Federal perante o julgamento do “mensalão” é compreensível.
Receberam da Procuradoria-Geral da República uma
denúncia que os especialistas consideram mais frágil que a que foi
feita contra Fernando Collor.
E aquela foi tão inepta que caiu por terra na
primeira análise!
O fulcro da acusação é uma palavra inventada
por um personagem famoso pela falta de seriedade. Nada, nem uma única
evidência foi produzida em sete anos de investigações que
demonstrasse que funcionou no Congresso Nacional, entre 2004 e 2005,
um esquema de compra de votos para aprovar medidas de interesse do
governo Lula.
O que torna a existência da “quadrilha do
mensalão” uma fantasia.
Quem duvidar, que leia a denúncia e verifique com
seus olhos se ela aponta as votações e os votos que teriam sido
negociados (o número do inquérito é 2245 e está disponível
no site da PGR)
Mas nem a fragilidade da denúncia, nem sua falta
de sentido, estiveram em discussão em algum momento.
Quando chegou ao Supremo, o julgamento já estava
concluído. O veredicto havia sido dado e transitado em julgado.
Exercendo o papel auto-assumido de vanguarda da
oposição ao “lulopetismo”, os proprietários e funcionários da
grande indústria de comunicação tinham o script pronto. E ai de
quem o contrariasse!
O que não quer dizer que o argumento mais forte
que usassem fosse o porrete. Uma dosagem equilibrada de ameaça e
adulação é sempre mais eficaz.
Se os ministros fizessem o que ela queria, as
portas do Paraíso se abririam para eles. Se teimassem em discutir
coisas menores – como provas, depoimentos e outros detalhes – a
fogueira começaria a arder.
Há alguns meses, o ministro Luiz Fux publicou um
livro. Como toda obra técnica, de interesse restrito. Seu título
bastaria para afugentar os leigos: “Jurisdição Constitucional”.
O lançamento no Rio de Janeiro, cidade natal do
autor, mereceu tratamento vip da TV Globo. Com direito a matéria de
1m30seg nos telejornais da emissora, tempo reservado a assuntos
relevantes.
Talvez alguém se perguntasse o porquê do
salamaleque. Mas é fácil entendê-lo.
Quem não gosta de ser bem tratado? Quem não
aprecia saber que sua família e seus amigos acabam de vê-lo na
televisão? Quem não fica feliz quando recebe um cafuné?
O Paraíso é assim, cheio de carinhos. E quem
pode proporcioná-lo pode o oposto. Como dizia Augusto dos Anjos: “A
mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Se fôssemos como os Estados Unidos, onde os
juízes da Suprema Corte são figuras inacessíveis, quase
desconhecidas do grande público, seria uma coisa. Mas não somos.
Aqui, nossos ministros adoram o reconhecimento e não hesitam em se
revelar. Amam os holofotes.
Uns fazem saber que andam de motocicleta, outros
que são exímios músicos, alguns se apresentam como poliglotas.
Identificamos seus times de futebol, os restaurantes que frequentam.
Às vezes, até seus negócios e os ambientes inadequados que
frequentam.
Do julgamento do “mensalão”, poderiam sair
endeusados, merecendo estátuas e concedendo autógrafos. Bastava que
cumprissem o papel que lhes estava reservado.
Ou achincalhados. Tornados vilões.
Cabia a eles escolher o caminho, o fácil ou o
difícil.
No fundo, estão fazendo o que a maioria das
pessoas faria na mesma situação. Talvez não o que se esperaria
deles.
Mas, quem mandou esperar, conhecendo-os?
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