Fascismo miúdo
Escasseiam aqueles que podem exibir o humor e a ironia de Antonio Prata
Na Bahia, manifestantes
interromperam a participação de Demétrio Magnoli em um debate e impediram outro
que seria protagonizado por Luiz Felipe Pondé. A escalada de intolerância,
ofensas ad hominem e de desqualificações da opinião
alheia segue o seu curso.
Escasseiam os que podem exibir o humor e a
ironia de Antonio Prata. Em artigo publicado no caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo, na edição de
domingo 3 de novembro,
Prata assume a sua “conversão” ao reacionarismo
que hoje, no “Brasil brasileiro”, empolga os que se julgam bem-nascidos e
bem-pensantes. “Convertido”, Prata pede licença para desfilar a procissão de
rancores que ronca nos Porsches e Ferraris em disparada pelas alamedas dos
Jardins e adjacências, sem desprezar a colaboração dos remediados em carros de
baixa octanagem.
Com requintes de ironia, Prata se
infiltra no pelotão dos brancos, ricos, remediados, heterossexuais, machistas,
e alerta para a invasão dos bárbaros: negros privilegiados com cotas,
vivandeiras do Bolsa Família, homossexuais e feministas. À mercê dessa chusma,
nada resta aos bons, bonitos e virtuosos senão responder com os bordões do
menosprezo e da revolta.
Nesse ambiente, a intolerância atarraxa todas
as máscaras e galopa a rédeas soltas. É ilusão encontrar personalidades por
detrás das personas. Na
passarela da intolerância, as personasimprimem
suas faces inexpressivas nas personalidades congeladas. Não são personagens à
procura de um autor, mas máscaras esvaziadas na busca desesperada por
protagonismos e autorias.
O desespero é devastador: a multidão de personas dissolve-se na mesmice do narcisismo anônimo. Cintilam e se apagam com a velocidade das aparições no Facebook ou no Instagram. É a massificação da diferença. Daí a agressiva repulsa ao outro, no mundo exatamente como eles, apenas do lado contrário.
O desespero é devastador: a multidão de personas dissolve-se na mesmice do narcisismo anônimo. Cintilam e se apagam com a velocidade das aparições no Facebook ou no Instagram. É a massificação da diferença. Daí a agressiva repulsa ao outro, no mundo exatamente como eles, apenas do lado contrário.
Foram exuberantes as manifestações de apoio e
de repúdio à caricatura do conservadorismo desenhada por Antonio Prata. O traço
de união entre as favoráveis e contrárias é a obstinada resistência ao humor e
ironia, uma cabal demonstração dos estragos produzidos pelos trabalhos de
massificação da chamada “indústria cultural”. A avaliação dos “bem-pensantes” a
respeito de si mesmos não resiste a uma prova de interpretação de textos.
Na visão de Elisabeth Roudinesco, o sujeito
moderno, aquele “consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela
morte, pela proibição”, é substituído pela concepção “psicológica de um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente,
preocupado em retirar de si a essência de todo o conflito”.
Os trabalhos de destruição da subjetividade
moderna são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso
econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, as vítimas das
promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos
contra os “inimigos” imaginários produtores do seu desencanto. É preciso caçar
essa escumalha como ratazanas prenhes, diria Nelson Rodrigues, grande
conservador crítico.
Essa curiosa “psicologização” da existência,
diz Roudinesco, avassalou a sociedade e contribuiu para o avanço da
despolitização, filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram
de “pequeno fascismo da vida cotidiana”, praticado e celebrado pelo indivíduo
ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que ele
não compreende. O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada
indivíduo, sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos
sacrossantos princípios dos direitos do homem, do humanismo e da democracia.
No livro As Origens do Totalitarismo e da Democracia, Hannah Arendt definiu o ambiente hostil à cidadania e à liberdade dos modernos como o espaço do totalitarismo anárquico. “A política totalitária não substitui um corpo de leis por outro, não instaura um consensus iuris próprio, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade... a peculiaridade do totalitarismo não é uma estrutura monolítica, senão a ausência de estrutura.”
No livro As Origens do Totalitarismo e da Democracia, Hannah Arendt definiu o ambiente hostil à cidadania e à liberdade dos modernos como o espaço do totalitarismo anárquico. “A política totalitária não substitui um corpo de leis por outro, não instaura um consensus iuris próprio, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade... a peculiaridade do totalitarismo não é uma estrutura monolítica, senão a ausência de estrutura.”
As lideranças do “pequeno fascismo
cotidiano”, diz Domenico Losurdo, propugnam explicitamente por uma ditadura
invisível, mais potente do que qualquer outra, justamente porque o indivíduo
“psicológico” recusa os sinais exteriores de reconhecimento dos direitos
alheios consubstanciado no consensus
iuris.
por Luiz Gonzaga Belluzzo, na Revista CartaCapital desta semana
Nenhum comentário:
Postar um comentário