Uma experiência interessante
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Por Roberto Bitencourt da
Silva no Diário Liberdade
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Cheguei
essa semana de viagem à Cuba. Trata-se de um país sensacional, com um povo tão
simpático e acolhedor como o brasileiro, que revela traços culturais muito
semelhantes, na música, na alimentação, no jeitão descontraído.
Em
função das imagens depreciativas e preconceituosas a respeito da nação coirmã
da América Latina, que grassam nos principais meios de comunicação brasileiros,
me vejo impelido a tecer algumas observações sobre o que vi, li e ouvi no belo
país caribenho.
Privilegio
impressões que tive do cotidiano, especialmente da cidade de Havana e em
conversas com moradores, trabalhadores e estudantes.
Assim,
essas observações possuem um caráter fragmentário, mas que procuram destacar
algumas características, virtudes, problemas e dilemas vivenciados pelo povo
cubano.
Está
aí um povo conversador. Os cubanos gostam, realmente, de uma prosa, em nada
devendo à nossa boa gente, em particular da querida Minas Gerais.
Um
povo curioso com o que se passa em outros lugares, inclusive o Brasil,
apresentando-se bastante compreensivo com as diferenças políticas e culturais
dos países. Tem muito o que ensinar, mas gosta bastante de aprender.
Uma
nação marcada por grande tranquilidade e segurança nos espaços públicos.
Subproduto do acentuado igualitarismo social e econômico e da expressiva
assistência social e educacional concedida às crianças e aos jovens.
Dá
bastante gosto ver a criançada e a juventude com seus uniformes arrumadinhos
nas escolas. A educação é oferecida em regime de horário integral. Não existem
menores abandonados nas ruas.
À
noite os adolescentes circulam tranquilamente nas praças e demais áreas
públicas, desfrutando o sabor da idade. Não existe a lastimável condominização
da vida urbana, que conhecemos em nossas metrópoles.
Os
cubanos são fãs das telenovelas produzidas pela Rede Globo. Ao saberem que sou
brasileiro, sempre disparavam ansiosas perguntas em relação ao final da novela
“Império”. Demonstram um verdadeiro encantamento com a técnica, a capacidade
artística, o humor e certa imagem de prosperidade do Brasil.
Por
via das novelas, as questões da violência e da falta de assistência aos jovens
e às crianças em nosso país chamam demasiadamente a atenção dos cubanos.
Compreensível, já que, entre os países que integram a periferia do sistema
internacional, difícil encontrar nação que ombreie com Cuba na importância
concedida à infância e à adolescência.
Cumpre
destacar que se trata de um país dotado de contradições, menores que as
brasileiras, nem por isso mais fáceis de serem resolvidas. O embargo
norte-americano e a tímida base técnica e industrial da nação cubana são
fatores problemáticos.
As
estreitas – e possivelmente inevitáveis – relações comerciais estabelecidas no
passado com a Rússia socialista não propiciaram diversificação das atividades
produtivas. Um fenômeno que há muito preocupava a Ernesto Che Guevara, um
extraordinário ícone político local.
Sob
o ponto de vista da base produtiva, o país revela algumas características que
tipificam as nações dependentes e periféricas. Suas atividades principais são o
açúcar, o tabaco, o rum e o turismo. Contudo, possui grande domínio
técnico-cientifico em tecnologias associadas à saúde.
Restringindo
o comércio exterior cubano, o bloqueio econômico norte-americano implica em
encarecimento dos bens e insumos importados. O governo dos EUA, entre 2009 e
2016, aplicou significativas multas às empresas norte-americanas que fizeram
negócios com Cuba, alcançando soma superior a 14 bilhões de dólares (Granma,
30/01/2016, pág.5).
Um
problema que eleva demasiadamente os preços de diversos bens de consumo pessoal
e familiar. Fonte de descontentamento entre diversas pessoas com as quais tive
a oportunidade de conversar, que não possuem acesso a produtos tidos como
triviais para os parâmetros brasileiros, mesmo para um trabalhador humilde do
nosso país.
Visando
superar tal dificuldade, o governo cubano tem implementado políticas de atração
do investimento externo, principalmente por meio da criação de joint ventures
com empresas espanholas e francesas.
Segundo
notícia do jornal Granma (30/01/2016, pág.1), o Partido Comunista de Cuba, em
2011, decidiu “fazer da inversão” estrangeira “uma base principal do
desenvolvimento”, com o objetivo de construir um “socialismo justo, sustentável
e próspero”.
Todavia,
há distorções sociais claras, estimuladas pelo incentivo ao turismo enquanto
fonte de divisas. Obter CUCs (a moeda conversível ao dólar e, principalmente,
ao euro) permite a aquisição de bens de consumo iluminados pela propaganda das
corporações multinacionais e que propiciam mais conforto individual e
doméstico.
Com
isso, não foram poucos os casos em que me deparei com profissionais altamente
qualificados, que deixaram setores como o ensino e a saúde, para dedicarem-se
ao setor de turismo. A contradição gerada não é pequena, pois causa certa
insatisfação com o que alguns disseram tender à promoção de um rebaixamento da
qualidade da educação e da saúde.
As
distâncias sociais não são pronunciadas, variando ao redor de 6 a escala entre
os menores e os maiores rendimentos da população. Estes, alcançados por
médicos, dirigentes de empresas estatais e professores com titulação mais alta.
Os
salários variam, aproximadamente, entre 250 e 1500 pesos cubanos (moeda não
conversível), o que corresponde a cerca de 10 a 60 euros.
A
moradia é assegurada a todos, que detém uma espécie de propriedade familiar. A
alimentação é subvencionada pelo Estado, assim como a educação e a saúde são
gratuitas. Artes e entretenimento, em boa medida, também subvencionados, com
amplo acesso.
O
calcanhar de Aquiles, como mencionado anteriormente, é o acesso a bens
elaborados não produzidos no país. Aí o CUC torna-se um atrativo especial. O
contraste com o padrão de consumo dos turistas e com conhecidos e familiares de
Miami também reforça certo descontentamento em face do escasso poder de compra
de bens importados.
O
“jineterismo”, isto é, práticas que vão de pequenas, mas não violentas,
malandragens à prostituição é visível, particularmente em alguns trechos na
área turística de Habana Vieja. Diga-se, fenômeno que, de forma alguma, envolve
crianças e jovens.
Outra
variável que suscita distorções na sociedade cubana é a estratégia
norte-americana de estímulo à imigração, por intermédio da política dos “pés
molhados” (Granma, 29/01/2016), em que são reservados direitos que nenhum
latino-americano possui ao emigrar para os Estados Unidos.
Ademais,
há lei norte-americana especialmente voltada à emigração de médicos cubanos,
nos países em que atuam por conta das parcerias com o Estado cubano. São fortes
atrativos, que guardam o potencial de minar os laços de solidariedade coletiva.
O
poder do dinheiro, do comércio, como diriam Marx e Engels, são vetores
poderosos para derrubar qualquer muralha da China. Afetam, precisamente, a vida
cotidiana, implicando na disseminação de possíveis hábitos, costumes e
expectativas das pessoas.
No
entanto, para mobilizar categorias do antigo debate promovido por Che Guevara,
não são apenas os “estímulos materiais” que marcam o horizonte dos cubanos. O
idealismo, ou o guevarista “estímulo moral”, também se encontra presente e com
força.
Foi
bastante perceptível no evento promovido por estudantes da educação básica e
universitária em homenagem a José Martí, personagem merecedor de enorme
reverência em diversos lugares de memória nos espaços públicos.
A
Marcha de las Antorchas, em que ocorre um desfile estudantil em homenagem ao
ícone que simboliza o ideal de soberania e libertação nacional, ocorrido ao
final de janeiro, foi emocionante. Uma multidão que ecoava cânticos a favor da
Revolução socialista e da defesa do interesse nacional.
Senhores
com idade mais avançada bradavam, com empolgação nas ruas, o nome do Comandante
Fidel.
Estudantes
do curso de História da Universidade de Havana, com os quais tive a satisfação
de trocar ideias, exaltavam a Revolução, afirmando que “antes os negros não tinham
acesso à universidade”.
Os
negros, me informaram, inclusive, eram proibidos de circular no bairro cujo
nome é autoexplicativo: Vedado. Uma localidade aprazível, que antes da
Revolução liderada por Fidel Castro era habitada somente por ricos. Hoje, nele
moram trabalhadores, também, negros.
Ademais,
simpático e erudito médico, com quem tive a oportunidade de conversar mais
longamente, explicou-me haver certos contrastes geracionais, particularmente
envolvendo os adultos entre 30 e 50 anos, de um lado, e os mais velhos e mais
jovens, de outro.
O
referencial civilizatório norte-americano na geração que passou pelo duro
“período especial” dos anos 1990, disse-me, é forte. Mas, de acordo com o
médico, ele não sai do país porque gosta do que faz, se sente importante e
prestigiado, apesar de receber muito menos do ganharia se emigrasse.
Reforçou
sua opinião, bem ao estilo preconizado pelo ideário guevarista, que o
“importante na política, veja, não se esqueça, é a igualdade. A igualdade
sempre”.
Em
franca convergência com esta dimensão moral, no período em que lá estive,
encontrou-se em visita à Cuba o ex-presidente e senador uruguaio, Pepe Mujica.
Em conferência na Casa de las Américas, assim como na televisão, Pepe ressaltou
a necessidade de as esquerdas e os povos valorizarem aspectos da vida não
submetidos ao universo do consumo material.
Em
resumo, o que se pode dizer é que a dialética entre os estímulos materiais e
morais reflete com certa nitidez as contradições sociais e econômicas do país.
Só o povo e o governo cubanos têm capacidade e autoridade para definir como
combiná-los, ou o que deve ou vai prevalecer com o tempo.
Encerro
essas ponderações com a lembrança de diálogo travado com um garçom, que
demonstrava bastante curiosidade sobre o nosso país.
Ao
dizer-lhe que o Brasil era um país diversificado, cultural, étnica e
geograficamente, salientando que era territorialmente imenso, aproximadamente
do tamanho da Europa menos a Rússia, ele silenciou e ficou pensativo. Não disse
mais nada. Não sei em que pensava.
Mas,
hoje, posso afirmar que, ao visitar Cuba, um país pequenino, com poucos
recursos, que fez e faz muito, também fico muito pensativo sobre nossas enormes
possibilidades enquanto sociedade mais justa, solidária e soberana. Igualmente
sobre as inconsequentes, conservadoras e subalternas escolhas que há décadas
temos feito.
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