FRANCISCO:
um religioso à serviço da humanidade
Foram 21 discursos e
encontrar multidões, impressionou os jornalistas que o entrevistaram no avião,
na viagem de volta, ao demonstrar aquele “vigor físico e espiritual”. Equador,
Bolívia e Paraguai, países latino americano foram visitados pelo Sumo Pontífice
da “Nova Igreja Católica Romana."
O papa Francisco
é o homem do século XXI. A marca indelével que ele já deixou nos primeiros dois
anos de pontificado continuará mantendo na nossa época, foi confirmada de
maneira nítida por ocasião da recente viagem ao nosso Continente.
Acolhido com enorme
entusiasmo em cada etapa, tanto na periferia pobre de Assunção quanto na
Catedral de Quito, falando aos estudantes ou aos movimentos populares das
diferentes nações, ainda uma vez Jorge
Bergoglio conseguiu espalhar sua palavra com grande impacto, e atingiu o
mundo inteiro.
A missão
latino-americana representou um extraordinário sucesso de participação popular
e de audiência mundial. Sua capacidade de análise integral, mesmo falando aos
mais humildes, sejam catadores de lixo, sejam desempregados, lhe permite
enfrentar as questões mais complexas com aquela simplicidade desarmante que
convence e comove, superando qualquer barreira de língua ou de cultura.
Grande orador, na
melhor tradição jesuíta, Francisco
consegue falar com eficácia aos quatros cantos do
mundo em qualquer circunstância, graças à mídia, que, favorável ou contrária,
ecoa constantemente sua mensagem pastoral e o acompanha passo a passo, sem
exclusão da sua imprevisível originalidade. Nesse anseio e com a dificuldade de
definir o personagem, que sem dúvida não se encaixa em nenhum esquema anterior,
até os jornais mais respeitados caem em banais escorregões, como aconteceu na
semana passada com The Economist, ao dar o título “O papa peronista” a
um artigo dedicado à recente viagem latino-americana. Voz sofisticada do establishment
econômico-financeiro internacional, a revista britânica revelou-se, desta vez,
no mínimo superficial, mas, não obstante a crítica implícita nesse título, os
austeros colegas londrinos não
conseguiram evitar definir o papa Francisco como um rock star.
Sua missão nos três
países foi fruto de sua própria escolha.
Com vigor
extraordinário, Francisco com dois anos de pontificado
particularmente intensos e que somente a volta às suas raízes sociais e religiosas
podia lhe assegurar.
A viagem ao Brasil em
julho de 2013 tinha representado o cumprimento de uma promessa anterior feita
por seu predecessor, Bento XVI, que decidira celebrar no Rio de Janeiro a
Jornada Mundial da Juventude.
“A Igreja
latino-americana tem grande riqueza: é uma Igreja jovem, com certo frescor,
também com algumas informalidades. (...) Este povo e esta Igreja viva, com
todos os seus problemas, representam uma riqueza. (...) Não devemos temer esta
juventude. E esta Igreja, mesmo indisciplinada, com o tempo se disciplinará,
mas nos dá um grande vigor.”
Com a viagem à
América Latina, o papa Francisco
continua desenhando o mapa ideal do seu pontificado
e confirma sua opção pelo resgate das periferias do mundo. Não por acaso, os
três países estão entre os mais pobres do continente e são alcançados depois
das visitas a Sri Lanka e Filipinas, Turquia, Bósnia, Albânia e Palestina, países “críticos” por diferentes razões e por serem
terras de recentes ou atuais conflitos.
Para Francisco,
“chegado do fim do mundo” à cadeira de São Pedro, a tentativa de dar
protagonismo às periferias não tem um conteúdo abstrato ou ideológico, mas
significa atenção concreta para os pobres e os excluídos. “É preciso seguir a Igreja”,
ou seja, o povo de Deus. Aprender dos pobres e dos últimos, deixar-se
evangelizar por eles – capazes de oferecer testemunhos de humana nobreza e solidariedade
– sem esquecer nunca que os pobres não são apenas números na estatística, mas, SOBRETUDO, nomes, rostos, histórias,
pessoas de carne e osso com seus anseios e sofrimentos.
O papa fica tão à
vontade quando encontra o povo, expresse ele ou não uma devoção religiosa. Esse fenômeno repetiu-se claramente por ocasião
do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que se deu em Santa Cruz de la
Sierra, na Bolívia, no dia 9 de julho. Se o primeiro Encontro, convocado em
Roma em novembro de 2014, demonstrou toda a radicalidade das posições sociais
de Francisco,
essa segunda ocasião para debater “os melhores
caminhos para superar as graves situações de injustiça de que padecem os
excluídos em todo o mundo.” representou sem
dúvida o momento crucial da visita latino-americana.
Francisco começou seu
discurso com uma premissa: “Para que
não haja mal-entendidos, falo dos problemas comuns de toda a humanidade.
Problemas que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode
resolver por si só. (...) Digamo-lo sem medo: precisamos e queremos uma
mudança. (...)Uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é
insuportável: não o suportam os povos (...) nem sequer o suporta a Terra, a
irmã e Mãe Terra, como dizia São Francisco.”
Após a denúncia, o
papa amplia o horizonte da sua análise: “Hoje a interdependência global requer respostas globais para os
problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce
entre os pobres, deve substituir essa globalização da exclusão e da indiferença.”
“Mesmo
dentro da minoria cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste
sistema, reina a insatisfação e, sobretudo, a tristeza. Muitos esperam uma
mudança que os liberte desta tristeza individualista que escraviza.”
“E por trás
de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro do ‘esterco do
diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em
segundo plano.”
“Quando o
capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez
do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena
o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz
lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a
irmã e Mãe Terra.”
Ante a imensidão do
desafio lançado, Francisco
é prudente quando sublinha que
“nem
o papa nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade social e da
proposta de soluções para problemas contemporâneos. Atrevo-me a dizer que não
existe uma receita.”
SEMEANDO
A ESPERANÇA
“Sabemos,
amargamente, que uma mudança de estruturas que não seja acompanhada por uma
conversão sincera das atitudes e do coração acaba a longo ou curto prazo por
burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. É preciso mudar o coração.”
Recorrendo a uma
imagem que será muito apreciada pelos budistas, ele conclui o raciocínio
afirmando: “Por isso
gosto tanto da imagem do processo, onde a paixão por semear, por regar
serenamente o que outros verão florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos
os espaços de poder disponíveis e de ver resultados imediatos.”
TRÊS
TAREFAS PARA OS MOVIMENTOS SOCIAIS
“A primeira
é pôr a economia a serviço dos povos. (...) Esta economia mata. Esta economia
exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.”
E a mudança não é uma utopia:
“É uma
perspectiva extremamente realista. Os recursos disponíveis no mundo são mais
que suficientes para o desenvolvimento integral de todos os homens”. A luta
deverá ser concentrada, portanto, na “justa distribuição dos frutos da terra e
do trabalho humano.”
A
segunda tarefa é o convite a “unir os
povos no caminho da paz e da justiça”. E um perigo grave vem do “novo colonialismo, que assume variadas
fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações,
credores, alguns tratados denominados ‘de livre-comércio’ e a imposição de
medidas de ‘austeridade’ que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos
pobres.”
Em outras
situações, o novo colonialismo se manifesta no interior de cada país, por meio
da “concentração monopolista dos
meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e
certa uniformidade cultural. (...) É o colonialismo ideológico.” (A família Marinho, da “grobo”,que fiqueLIGADA...).
“E a
terceira tarefa, talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é defender
a Mãe Terra.” Ele reitera sua
sensibilidade inovadora por uma ecologia integral e um novo sistema de relações
internacionais que considere com sabedoria os interesses das futuras gerações.
Isso significa recusar o “paradigma
tecnocrático que tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a
política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em razão do
lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser
humano e o meio ambiente.”
PALAVRAS
CORAJOSAS
“Peço humildemente perdão, não
só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos
nativos durante a chamada Conquista da América”.
No Paraguai em seu primeiro discurso,
diante das principais autoridades do país, Francisco
homenageou a mulher paraguaia, definida como a
espinha dorsal da nação e a “mais
gloriosa da América.” A referência foi à Guerra da Tríplice
Aliança (1865-1870) em que Brasil, Argentina e Uruguai, agredindo o Paraguai,
realizaram um autêntico genocídio, ao massacrar a grande maioria dos paraguaios
e reduzir a população masculina a somente 25 mil indivíduos. Nessa trágica
situação, a mulher paraguaia revelou-se como autêntica mãe da nação, levando adiante “suas
famílias e seu país, infundindo nas novas gerações a esperança de um amanhã
melhor.”
Inevitável que, entre
os conteúdos aqui relatados e a luta de classe, muitos reacionários considerem
que o passo é pequeno. A fobia do comunismo
é ainda muito forte nessas camadas da sociedade, mas é evidente que a arma
polêmica se revela sempre mais instrumental, sobretudo no caso de Francisco,
que, desse ponto de vista, não se preocupa minimamente em ser acusado de
marxista ou peronista, munido de argumentos fortes para se contrapor. Sua
resposta às acusações de “comunismo” é que a escolha dos pobres é
historicamente bem anterior e remonta ao Evangelho. Além disso, a doutrina
social da Igreja, a partir da Rerum Novarum de Leão XIII (1891) até a Caritas
in Veritate de Bento XVI (2009), passando pela Populorum Progressio
de Paulo VI (1967), oferece uma referência de conteúdos avançados e nobres.
BERGOGLIO
APRESENTA-SE COMO UM CONTINUADOR E NÃO COMO REVOLUCIONÁRIO
O problema
religioso, no entanto, foi a inadimplência pastoral da Igreja Católica na
realização desses ideais. Essa contradição imperdoável, a produzir
conservadorismo político-religioso nas épocas anteriores, está sendo resolvida
por Francisco com
passos de gigante. Efetivamente, do ponto de vista da doutrina, Bergoglio apresenta-se como
continuador e não como revolucionário. Não foi a Igreja, então, que se
radicalizou teoricamente nos últimos dois anos, mas é a parte dominante da
humanidade que é vítima de um modelo
econômico e cultural – o neoliberalismo –, que representa o antagonista por
excelência da ética cristã.
Francisco tira de foco os reacionários e
conservadores de todas as latitudes porque não é homem de esquerda. Sem
pretender dar uma definição, poderíamos mais prudentemente observar que ele
desconfia de todos os extremismos, tanto políticos quanto religiosos. Por falta
de outras referências políticas críveis, “o
papa argentino caracteriza-se hoje como o principal intérprete de um modelo de
sociedade alternativa, e quem o acusa de extremismo ou está de má-fé ou é
simplesmente ignorante, porque não reconhece as dramáticas relações de força
entre ricos e pobres que se estabeleceram nos últimos 30 anos na esfera
mundana, e a paralela defasagem entre teóricos e pastores na Igreja Católica” Claudio Bernabuci.
Inabalável em sua
segurança espiritual, o papa Francisco passou incólume pela embaraçosa situação
dos presentes extravagantes do presidente Evo Morales, que alguma intenção
instrumental provavelmente cultivava.
Deixou várias
condecorações revolucionárias na Basílica de Nossa Senhora de Copacabana,
padroeira da nação, para o desfrute dos bolivianos, mas levou consigo, com toda
tranquilidade, o Cristo na cruz com foice
e martelo, porque o considerou um belo exemplo de arte de protesto, obra
daquele padre jesuíta Luis Espinal,
assassinado em 1980, que ele admirava pela coragem, mas de quem desconhecia a
habilidade escultórica.
Saiu dos três países sem
beatificar governo algum, apreciando, porém, os avanços positivos dos últimos
anos, lembrando o valor do pluralismo e alertando sobre os perigos da ditadura,
do culto da personalidade e do anseio por liderança absoluta.
Francisco despediu-se da América Latina pedindo:
“Peço-lhes, por
favor, que rezem por mim. E se alguém não pode rezar, com todo o respeito,
peço-lhe que me tenha em seus pensamentos e mande-me uma boa onda”. Tal é
Francisco, um papa também muito simpático.
NB.: foi inestimável a contribuição de Claudio Bernabuci para a edição deste artigo.
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