Lula voltou maior de Curitiba
por Paulo Moreira Leite
Foto de Ricardo Stuckert
A multidão que aguardou por quase dez
horas pela aparição de Lula e Dilma no palanque da praça Santos Andrade, no
centro de Curitiba, na noite de quarta-feira, testemunhou um momento histórico
da resistência dos brasileiros contra o golpe de maio-agosto de 2016.
A mobilização popular em busca da
defesa de direitos ameaçados por Temer-Meirelles e pela restauração do Estado Democrático
de Direito ainda parece longe do ponto de chegada mas realizou um avanço
inegável, como uma caminhada em que se dobra uma esquina em direção ao ponto de
chegada. Reunindo uma massa respeitável de mulheres e homens que se apertavam
num dos pontos tradicionais da capital do Paraná, o ato sinalizou - justamente
na sede da República de Curitiba - para a ruptura do clima de consenso
artificial construído em torno da Lava Jato e da perseguição a Lula, cenário
indispensável para toda iniciativa de excluir da cena política o mais popular
presidente de nossa história republicana.
Não foi uma ação entre amigos, embora
eles tenham marcado presença. Foi uma manifestação popular, que mobilizou os
brasileiros e brasileiras de várias camadas, mas uma grande parte daquela parcela
mais larga que reside no degrau inferior da pirâmide social, que tanta
falta fez aos candidatos do PT nas eleições municipais – e que, aos saltos,
pressionada pelo desmanche de empregos e salários, se reaproxima de Lula, como
mostram as pesquisas eleitorais para presidente.
Ao longo do dia, viveu-se na praça
Santos Andrade um ambiente onde a tensão permanente que sempre acompanha a Lava
Jato havia sido reforçada por duas novas medidas intimidatórias. A primeira foi
absurdo decreto de suspensão do Instituto Lula sem qualquer razão consistente.
A outra foi a proibição de que a defesa pudesse gravar a audiência, pedido que
tem base legal. Numa conjuntura em que o próprio juiz Sérgio Moro divulga
vídeos pela internet, o veto ao segundo vídeo apenas garantiu que a mídia
adversária de Lula fizesse o trabalho de sempre, num espetáculo editado
conforme suas escolhas e preferencias, sempre previsíveis.
Lula transmitia muita confiança sobre
seu desempenho diante de Moro quando subiu ao palco. Era possível perceber - pelo
tom de voz, pelo jeito desembaraço, pela segurança nos comentários improvisados
- que sentia-se vitorioso, o que contagiou o público logo de cara.
Ele fez um pronunciamento curto e
incisivo, em tom pessoal e compreensivelmente emocionado. Após o discurso de
encerramento, da porta voz das ocupações Ana Julia, o ato se dispersou num
ambiente de confraternização, onde a sensação de vitória se somou a sensação de
dever cumprido.
Veteranos que atravessaram a luta
contra a ditadura militar não conseguiam evitar as lágrimas.
Um grupo de professoras que tomou um
ônibus em Belo Horizonte passou o dia se divertindo com a palavra de ordem
“Lula seu ladrão, roubou meu coração”.
Seis militantes que passaram dois dias
numa viagem de 4000 quilômetros de Natal a Curitiba, onde desfilavam com duas
bandeiras – do Estado e da capital distante – se aprontavam para o caminho de
volta, convencidos de que o esforço tinha valido à pena.
A certeza de que se assistia a um
episódio único em suas vidas fez muita gente acompanhar os discursos de celular
na mão, seja para fotografar, seja para transmitir som e imagem aos amigos,
pelo Facebook. “Não consigo enxergar nada, só celulares ”, protestou, a poucos
metros do palanque, um sujeito de terno, acompanhado da namorado.
Calou-se quando alguém rebateu: “É pelo interesse público”. Até tarde da
noite,
Doze dias depois da greve geral, o ato
de ontem foi uma demonstração da capacidade de organização das entidades
empenhadas na defesa dos direitos de Lula. Sindicatos e confederações se
mobilizaram, em companhia do Partido dos Trabalhadores, do MST e do MTST. Foi
uma vitória política e também logística, que envolveu promover uma manifestação
de peso num único ponto do país. Num sinal da temperatura aquecida em que o
país se encontra, o dia se encerrou com o início dos preparativos para uma
concentração em Brasília, 24 de maio, para combater a reforma da Previdência.
A retoma das mobilizações não ocorre no
vazio, mas faz parte de uma conjuntura política propícia para o crescimento das
manifestações das camadas debaixo, que costumam ganhar fôlego quando se acirram
os conflitos nas camadas de cima. Em maio de 2017, as mesmas vozes
engravatas que se mostraram eternamente unidas para afastar Dilma e
garantir carta branca para Sérgio Moro e a Lava Jato, agora travam uma luta
aberta pelos rumos da operação.
O conflito entre o PGR Rodrigo Janot e
Gilmar Mendes, até ontem o mais influente ministro do STF, é bastante
ilustrativo sobre limites aceitáveis para o estado de exceção. Aquilo que
parecia líquido e certo para Janot já não parece garantido Gilmar, num conflito
que, mesmo envolvendo denuncias de parte a parte contra familiares respectivos,
envolve questões muito além de convicções e compromissos de um ministro do
Supremo e o chefe do Ministério Público.
Principal aliado da Lava Jato entre os
grupos de mídia, com uma credibilidade particular entre os membros do
judiciário, o Estado de S. Paulo publicou um editorial em 10/5/2017 que é uma
demonstração contundente de que acabou-se o tempo da unanimidade e do apoio
incondicional. Combatendo a mitologia construída em torno da operação em seu
cerne, o jornal diz que “é perniciosa a tentativa de transformar a Lava Jato na
grande panaceia nacional.” O problema dessa postura “perniciosa”, nas palavras
do editorial, é claro: “além de não tirar o país da crise, esse modo (de
conduzir a Lava Jato) inviabiliza a saída para a crise.” O Estadão vai além.
“Sendo importantes, os atos da Lava Jato não podem substituir a verdadeira
prioridade nacional. Há uma profunda crise econômica, social, política e moral,
que precisa com urgência ser combatida. Reconhecer essa hierarquia de valores
não é um apoio velado a impunidade. É simplesmente não fechar os olhos, por
exemplo, aos 14 milhões de desempregados.”
Ninguém tem o direito de aguardar uma
postura piedosa em benefício de Lula. Seus adversários, que não se resumem a um
único jornal, já patrocinaram vergonhosas tentativas de destruir sua
reputação como cidadão e líder popular, num insubstituível trabalho
preparatório à Lava Jato. A perseguição não se apoia em nenhum valor moral.
Apenas reflete o tratamento que os 1% que mandam no país reservam aos inimigos
de classe.
Paulo Moreira Leite jornalista e escritor. É diretor do Saite 247 em Brasília.
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