Brasil: Estado de Exceção e
sua ilha de fantasia
Evidente que
não esperávamos, em nossa missão à ONU, em genebra, por parte de uma autoridade
nomeada por Michel Temer, uma denúncia formal do golpe de Estado que completou
um ano há poucos dias. O que causou perplexidade foi o absoluto “esquecimento”
das violações de Direitos Humanos recorrentes no Brasil e intensificadas no
governo ilegítimo.
Por Deputado Paulão*
Foto: ONU/Jean-Marc Ferré
“A tradição dos oprimidos
nos ensina que o “estado de exceção”em que vivemos é na verdade a regra geral”.
Walter Benjamin.
O filósofo
italiano Giorgio Agamben, um dos pensadores contemporâneos mais instigantes, em
sua obra “Estado de Exceção”, afirma que “o estado de exceção apresenta-se como
a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. Um poder que extrapola as
regulamentações e os controles, que, para o consagrado filósofo italiano,
atualmente não é mais uma forma excepcional, mas o padrão de atuação dos
Estados pelo mundo.
No Brasil, após o
golpe parlamentar, o Estado de Exceção vem se consolidando a cada dia. Na
Comissão de Direitos Humanos e Minorias se avolumando situações, fatos e
denúncias que demonstram o quão estamos imersos no paradigma dominante de
política sob a égide do estado de exceção, um vazio do Estado de Direito
Democrático, como escreveu Agamben “um espaço anômico onde o que está em jogo é
uma força-de-lei sem lei”.
A denúncia e o
combate desse estado de exceção tem sido o centro da nossa atuação na CDHM.
Apesar desta luta, compartilhada por milhares de trabalhadores, movimentos
sociais e organizações da sociedade civil, observamos que para o governo
brasileiro, existe uma realidade paralela, em que tudo caminha sob a mais
absoluta normalidade democrática.
Foi o que
identificamos em nossa missão oficial à Genebra, na Suíça, para acompanhar a
apresentação do relatório brasileiro no processo de Revisão Periódica Universal
(RPU) da Organização das Nações Unidas, que a cada quatro anos e meio analisa a
situação dos Direitos Humanos em cada país. Nesta rodada, em maio de 2017, foi
a vez do Brasil mostrar quais avanços foram realizados após as recomendações
dos países-membros da ONU na apresentação anterior, feita no segundo semestre
de 2012.
O relatório
oficial, sob responsabilidade da ministra dos Direitos Humanos, Luislinda
Valois, mostra um país que tem um grau de respeito e garantia dos Direitos Humanos
semelhante aos europeus que mantém um Estado de Bem-Estar Social, ou ainda, aos
países latino-americanos que vivem em um ambiente institucional previsível, com
eleições livres e resultados cumpridos.
É evidente que
não esperávamos, por parte de uma autoridade nomeada por Michel Temer, uma
denúncia formal do golpe de Estado que completou um ano há poucos dias. O que
causou perplexidade na sociedade civil, delegações internacionais e imprensa
que acompanhou o processo foi o absoluto “esquecimento”, ou omissão, de
situações presentes no cotidiano de qualquer observador arguto das violações de
Direitos Humanos recorrentes no Brasil e intensificadas no governo ilegítimo.
Pasmem, não se
falou uma linha sobre a escalada da repressão policial às manifestações,
tampouco sobre a letalidade das polícias militares brasileiras, entre as mais
violentas do mundo. Não houve reconhecimento do aumento no número de defensores
de Direitos Humanos assassinados em território nacional, evidenciado em casos
como os nove trabalhadores rurais mortos em Colniza (MT), e no atentado aos
índios Gamela, em Viana (MA), a despeito das inúmeras recomendações de
representantes dos demais países para ampliar a atenção à questão indígena. Os
avanços citados no texto, em sua quase totalidade, tratam de políticas públicas
instituídas no governo da presidenta Dilma Rousseff, entre 2013 e 2015, muitos
deles em processo de desmonte, como a redução no número de beneficiários do
Bolsa Família, celebrado pela comunidade internacional como um programa
fundamental na garantia de direitos e redução das desigualdades, e os programas
de proteção às testemunhas. Uma ilha da fantasia que não resiste a uma análise
detida dos fatos.
Como uma “cereja
no topo do bolo” desta avaliação enviesada acerca dos Direitos Humanos no
Brasil, a delegação brasileira, por meio da ministra Luislinda e da
secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Castro, usaram os
microfones da ONU para defender as políticas de retirada de direitos, como as
reformas Trabalhista e da Previdência, além da PEC 55, que limitará os gastos
públicos do Brasil por 20 anos!! É a primeira vez que uma delegação oficial
defende a retirada de direitos em um fórum que visa alcançar justamente o
contrário: a garantia de direitos humanos.
As delegações
estrangeiras deram sinais de que compreendem a situação no Brasil. Foram 246
recomendações feitas ao Brasil, muitas delas demonstrando preocupação com a
disposição do governo brasileiro em realizá-las. Os temas mais recorrentes
foram a atenção aos povos indígenas e quilombolas, que são alvo de massacres e
pressões para que deixem seus territórios, o aumento das mortes de defensores
de Direitos Humanos, as condições do sistema carcerário brasileiro, sobretudo
para as mulheres, os direitos da criança e do adolescente e o combate à
discriminação de gênero, etnia e orientação sexual.
Diante deste
cenário de descompasso entre o Brasil real denunciado pela população e o
imaginário trazido pelo governo Temer em plena ONU, na condição de presidente
da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, convidei
duas integrantes do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a relatora dos
Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Taulli-Corpuz, e a relatora de Direitos
de Associação, Annalisa Ciampi, para virem ao Brasil e conhecerem de perto as
denúncias que se multiplicam de violações de Direitos Humanos no território
brasileiro, permitindo a elaboração de subsídios a uma ação internacional que
dê conta às demandas, intervenções e formulações de documentos e manifestações
por parte dos movimentos sociais, que tem promovido, a despeito do esquecimento
proposital da grande imprensa e do cerco provocado pela atuação da bancada
parlamentar governista, boas reflexões sobre estes temas.
Por fim, na
reunião com a sociedade civil brasileira de avaliação da apresentação oficial,
onde tive direito à palavra (apesar das tentativas do Itamaraty em negar meu
credenciamento no evento, conforme denunciou o jornalista Jamil Chade, do
Estadão), pude denunciar aos observadores internacionais presentes o estado de
exceção vigente no Brasil, expresso na perseguição aos movimentos sociais, a
repressão indiscriminada e generalizada aos que se manifestam contra o governo
Temer,a omissão do Estado nos casos recorrentes de extermínio de povos
indígenas, que muitas vezes são depreciados por quem deveria zelar por seus
direitos, os ataques aos que lutam pelo acesso à terra e as muitas ameaças que
tramitam no Congresso Nacional, sintetizadas num relatório produzido pela
assessoria técnica da Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
No relatório,
disponível para toda a sociedade na página oficial da Câmara, são fartos os
relatos que narram a realidade crua das ruas, de francas violações de Direitos
Humanos típicas de um Estado de exceção, tal qual as reformas em tramitação no
Congresso conduzidas por um governo sem votos, mas que adotou as tribunas
internacionais para defender em nome de uma população onde 90% rejeitam o
presidente e 95% abominam a Reforma da Previdência, um processo irreversível de
retirada de direitos constitucionais. Conferindo uma forma legal àquilo que não
pode ter forma legal, como diria Agamben ao analisar o Brasil de 2017.
*Paulão do PT de Alagoas, Presidente da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias da Câmara dos Deputados.
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