"Um dos meus objetivos é desmitificar o Che"
Em um livro recém-publicado na França, Juan Martin Guevara apresenta uma
visão profunda do irmão Che
publicado 30/05/2016 05h04

"Ele era o menos normal de uma família não
muito normal", diz Juan sobre o irmão Che
*De Paris
O irmão caçula de Ernesto Che Guevara esteve
em Paris, em abril, para lançar a biografia do herói. O Che é um ícone mundial,
mas seu pensamento e seus textos são menos conhecidos. Por isso, a missão do
irmão, autor de Mon Frère le Che, em parceria com a jornalista francesa Armelle
Vincent, é divulgar “um dos pensadores mais importantes do marxismo”,
inspirador de revoluções anticolonialistas por todo o mundo. Grande leitor de
Marx, o Che escreveu mais de 3 mil páginas publicadas em sete volumes.
No fim de sua vida, o Che tornou-se muito crítico
dos desvios do comunismo soviético. “A URSS não o via com bons olhos, tanto
quanto os Estados Unidos. Ele era um agitador que fomentava revoluções e
incomodava a ordem estabelecida.
A URSS não amava os revolucionários. Penso que
alguns agentes do KGB podem ter colaborado com a CIA para eliminar o Che na
Bolívia”, escreve Juan Martin. Provável, mas difícil de provar.
CartaCapital: Por que o
senhor decidiu quebrar o silêncio depois de muitos anos?
Juan Martin Guevara: Em 2009, a
Secretaria de Turismo da Argentina (depois ministério) lançou um
programa chamado “Pelos passos do Che”, que vincula os museus dedicados ao meu
irmão na Argentina: Alta Gracia (Córdoba), La Pastera (San Martín de
los Andes) e Hogar misionero Che Guevara (Caraguatay, Misiones).
No lançamento desse programa, fui convidado a
participar pelos dirigentes de cada museu. A partir de então, comecei a
realizar palestras em público, cada vez com maior frequência e convenci-me da
necessidade de revelar o Che como ser humano,
difundir seu pensamento, sua obra e colocá-la em seu contexto.
Mon Frère
Le Che. Juan Martin Guevera,
Armelli Vencent. Calmann-Lévi.
CC: O mundo inteiro conhece a imagem
de Che Guevara. Poucos conhecem o pensamento.
JMG: Daquele programa turístico surgiu
a ideia de criar uma fundação, tendo em conta que mais de quatro décadas depois
seguimos as marcas deixadas pelo Che, convencidos de que o permanente renascer
de suas ideias e ações obedece a razões que, de uma maneira ou de outra,
expressam a necessidade dessa referência para enfrentar um mundo cheio de
iniquidades, contradições e injustiças.
CC: Os aventureiros da família foram
numerosos. O senhor escreve: “A história provaria que ele era mais louco, mais
temerário, determinado e idealista que qualquer um deles”.
JMG: O termo “loucura” é uma forma que
uso para descrever os que numa sociedade conservadora e mercantilista rompiam
com os moldes. Assim era nossa família. E por isso digo que quem melhor rompeu
com esses limites foi Ernesto. Era o menos normal de uma família não muito
normal.
Num discurso de 1965 em Argel, ele definia uma
posição crítica em relação à União Soviética e também o fez nas Notas
Críticas, que escreveu sobre um Manual de Economia Política
publicado na própria URSS. Nelas, ela já vaticina o regresso ao capitalismo
daquele “socialismo real”.
CC: Como foi viver à sombra de um
mito?
JMG: Em princípio, um dos meus
objetivos de comunicação é desmitificar o Che. Humanizá-lo, colocá-lo com os
pés nesta terra, falar do contexto familiar. E contar como se vivia na
Argentina e no mundo nos anos de sua formação. Claro que ser irmão de alguém
que vai crescendo cada vez mais como imagem até se converter em um personagem
quase mítico é algo muito especial.
Para mim ele continua a ser meu irmão Ernesto e,
além disso, meu companheiro e minha referência nas lutas por um mundo mais
justo. Formei-me em três ambientes. Nossa casa era muito politizada e líamos
muito. Depois teve a escola e a rua. Isso foi muito importante para mim.
CC: A captura e a morte de Che Guevara ficaram
envoltas em mistério. De fato, ele foi executado dia 9, depois de ter sido
preso e desarmado. Como a família recebeu a notícia da morte e o que fez para
recuperar o corpo?
JMG: Eu trabalhava como ajudante de
caminhoneiro na distribuição de leite e derivados, e muito cedo, no dia 10 de
outubro, vi a foto do corpo de Ernesto
em um jornal. Não tive dúvidas de que era ele. Em reunião de família decidimos
que Roberto viajaria para a Bolívia.
Ele foi com dois jornalistas da revista Gente,
que fretou um avião para ir a Vallegrande e a La Paz. Os militares disseram:
“Não tem corpo”. Roberto voltou. De Cuba nos confirmam a morte do Che e Roberto
foi a Cuba. Muitos anos depois, em 1997, os restos foram recuperados e levados
juntamente com outros para o Mausoléu de Santa Clara, em Cuba.

Em Nicarágua, um mural com imagens de Che
Guevara (Foto: Elemaki/Wikimedia)
CC: Qual a influência da mãe na
formação de Ernesto?
JMG: Sempre se fala da influência da
mãe como algo determinante em sua formação. Creio que a formação dele, como de
nós todos, foi um resultado da influência de nossa mãe, mas também de um
contexto no qual meu pai teve um papel muito importante por seu temperamento
inquieto, de ruptura com os padrões, por seu talento de grande caricaturista,
por sua inclinação pela poesia e por seus sonhos de grandeza e seus recomeços.
Também por sua capacidade de adaptar-se a todas as situações.
Minha mãe, ao contrário, era firme, disciplinada e
tinha conceitos éticos com clara inclinação social para a diversidade. Mas
também tiveram importante papel o tio Jorge, a tia Carmen e seu marido, e o
ambiente de casa aberta a todos e muita leitura, muitos livros.
CC: O senhor sempre quis ser
proletário, apesar de ter feito um ano de universidade. Foi caminhoneiro,
proprietário de uma livraria de publicações de esquerda, importador de charutos
Havana. Ficou preso 8 anos, 3 meses e 23 dias, por seu engajamento político no
Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Como milita politicamente hoje?
JMG: O fato de querer ser proletário
não foi uma aspiração, um desejo. Os trabalhos que exerci foram se apresentando
com a vida. Aos 19 anos me casei e aos 24 tinha três filhos. Em 1974 fui preso
por deter propagandas consideradas ilegais pelo governo da época. Depois de
três meses, voltei à liberdade. Em 1975 fui preso novamente, até 1983.
CC: Como vê a Argentina sob um governo de direita?
JMG: Penso que esquerda, direita,
progressismo, conservadorismo, são apenas palavras. Não se conhecem bem os
limites de cada conceito e tudo fica meio difuso. Não penso que se possa
diferenciar um capitalismo humano de outro inumano. Ambos são mercantilistas e
a tudo impõem um preço. O lucro é o objetivo máximo. A propaganda nos estimula
a ficar correndo atrás do consumo.
CC: “Os valores humanos e sociais
caros aos cubanos correm o risco de se perder com o retorno dos Estados Unidos
à ilha”, diz o livro. Fidel é o último guardião desses valores de igualdade e
solidariedade?
JMG: Hoje, não se pode resolver essa
questão em um país isolado. A globalização é um fato. E o capitalismo global
vai consumindo de maneira rápida a natureza, que não é renovável. A exploração
humana sempre se renova, mas os mares, os glaciares, os bosques e o oxigênio
não são renováveis.
E a irracionalidade da luta dos “mercados” leva a
um consumismo com um único sentido de vender e acumular em grandes monopólios
a riqueza que se produz. Por isso penso que a solução para Cuba é igual à de
todos os habitantes do planeta.
CC: Que chance há de dar
continuidade, ou de retomar, a luta do Che a favor da verdadeira independência
da América Latina?
JMG:
Digo
no livro. Sou otimista a longo prazo, mas pessimista a curto prazo. Nada vai ser
resolvido de hoje para amanhã. A luta é longa e difícil. Mas o legado do Che e
de outros atores de nossa história será fundamental para que tenhamos um
projeto para o futuro.
*Entrevista publicada
originalmente na edição 902 de CartaCapital, com o título "O caçula
humaniza o mito"
Nenhum comentário:
Postar um comentário