Entro no uber numa tarde de sábado. Vejo que o
motorista é um homem muito forte, de pele negra. Sempre bato um papo com
os motoristas mas naquele dia não estava a fim de conversar. Ele segue naquela
velocidade de cruzeiro que às vezes irrita quem está com pressa. Para não
ficar muito antipático, uns 300 metros adiante puxo assunto.
_ O pessoal come muito essas balas aqui?
Com uma voz mansa e uma entonação gentil e atenciosa de quem fala com a própria avó de 90 anos, o homem com braços de alterofilista responde:
_ Mais é criança que gosta. Ou então o pessoal que vem da madrugada...
Não lembro como a conversa chegou até a profissão dele.
_ Sou capitão da Polícia Militar. Completo a minha renda aqui no uber.
A associação foi imediata diante daquele corpanzil.
_ Você é do Batalhão de Choque, né?
_ Sim, senhor _ respondeu o motorista no mesmo tom gentil e manso que agora contrastava com as imagens na minha mente dos homens do choque distribuindo cassetada nas manifestações populares.
Tomei coragem.
_ Sabe, amigo, eu sempre quis encontrar algum de vocês num lugar que não fosse uma zona de conflito onde pudéssemos conversar com calma. Às vezes, vejo seus colegas fazendo ginástica na praia e penso que seria o momento ideal, mas nunca tentei, fiquei sem graça de abordar.
Ele está interessado, vejo pelos seus olhos no retrovisor. E prossigo:
_ Acho que seria muito legal se vocês do choque e os estudantes universitários pudessem conversar numa boa, trocar ideias com calma, porque muitos são da mesma faixa etária e vivem a mesma realidade no Brasil. O problema é que os dois grupos só se encontram na hora do conflito. No dia em que o choque mudar de lado nós consertamos esse país, nesse dia o povo coloca essa corja de ladrões para fora e toma o poder.
_ É verdade. Mas é difícil. A Polícia Militar tem uma hierarquia muito rígida.
_ Você sabe o que aconteceu com aquele policial do choque que se recusou a reprimir a manifestação de professores estaduais?
_ Não foi só um, foram 15, e eu era um deles. Ficamos 15 dias presos no quartel.
_ Sério!?
_ Como é que eu vou bater em professor? Não dá.
É difícil descrever a emoção que senti vendo um policial dizer aquilo. Ele prosseguiu, com a mesma fala mansa:
_ Agora não nos escalam mais para manifestações. Quando tem alguma coisa assim, mandam a gente para outros trabalhos, reforçar UPPs por exemplo. É um absurdo nós, funcionários públicos, reprimirmos nossos colegas que protestam para receber salários, estamos todos com salários atrasados por causa desses políticos que acabaram com o estado do Rio.
_ Qual é a porcentagem de pessoas que pensam como você dentro da Polícia Militar? Chega a 10%.
Ele pensa um pouco.
_ Acho que uns 20%. Mas é difícil politizar a tropa, a maioria dos soldados nunca leu nada na vida. Eu costumo sempre mandar os soldados lerem, lerem qualquer coisa para ver se pegam o hábito. Indico até livros de guerra porque pelo menos eles estarão lendo. Mas é muito complicado.
_ Você já pensou em entrar na política, ampliar seus horizontes, tentar mudar as coisas, ser um contraponto ao Bolsonaro entre os militares?
_ Não sei... já pensei mas... não sei. Detesto esse Bolsonaro. Outro dia, na véspera da eleição passada, participei de um debate em que estava o filho dele, candidato a prefeito. Eu sabia que ele e o pai recebem dinheiro da Taurus (fabricante de armamento que fornece ao governo do Rio). Perguntei então o que ele achava da péssima qualidade das armas usadas pela polícia, que falham e provocam a morte de muitos policiais. Ele ficou todo embaraçado diante de uma platéia cheia de policiais. Foi engraçado.
_ E você não está marcado entre os oficiais por ser de esquerda?
_ Estou sim, querem me mandar até para o morro do Alemão comandar uma UPP.
_ Mas isso é mandar você para a morte! Estão atacando a polícia direto lá.
_ É, mas não sei o que vai acontecer. Talvez até as UPPs acabem antes disso...
A corrida chega ao final e me despeço do capitão. Desço do carro com uma ponta de esperança, ainda que seja uma pontinha tão pequena que quase não dá para enxergar.
_ O pessoal come muito essas balas aqui?
Com uma voz mansa e uma entonação gentil e atenciosa de quem fala com a própria avó de 90 anos, o homem com braços de alterofilista responde:
_ Mais é criança que gosta. Ou então o pessoal que vem da madrugada...
Não lembro como a conversa chegou até a profissão dele.
_ Sou capitão da Polícia Militar. Completo a minha renda aqui no uber.
A associação foi imediata diante daquele corpanzil.
_ Você é do Batalhão de Choque, né?
_ Sim, senhor _ respondeu o motorista no mesmo tom gentil e manso que agora contrastava com as imagens na minha mente dos homens do choque distribuindo cassetada nas manifestações populares.
Tomei coragem.
_ Sabe, amigo, eu sempre quis encontrar algum de vocês num lugar que não fosse uma zona de conflito onde pudéssemos conversar com calma. Às vezes, vejo seus colegas fazendo ginástica na praia e penso que seria o momento ideal, mas nunca tentei, fiquei sem graça de abordar.
Ele está interessado, vejo pelos seus olhos no retrovisor. E prossigo:
_ Acho que seria muito legal se vocês do choque e os estudantes universitários pudessem conversar numa boa, trocar ideias com calma, porque muitos são da mesma faixa etária e vivem a mesma realidade no Brasil. O problema é que os dois grupos só se encontram na hora do conflito. No dia em que o choque mudar de lado nós consertamos esse país, nesse dia o povo coloca essa corja de ladrões para fora e toma o poder.
_ É verdade. Mas é difícil. A Polícia Militar tem uma hierarquia muito rígida.
_ Você sabe o que aconteceu com aquele policial do choque que se recusou a reprimir a manifestação de professores estaduais?
_ Não foi só um, foram 15, e eu era um deles. Ficamos 15 dias presos no quartel.
_ Sério!?
_ Como é que eu vou bater em professor? Não dá.
É difícil descrever a emoção que senti vendo um policial dizer aquilo. Ele prosseguiu, com a mesma fala mansa:
_ Agora não nos escalam mais para manifestações. Quando tem alguma coisa assim, mandam a gente para outros trabalhos, reforçar UPPs por exemplo. É um absurdo nós, funcionários públicos, reprimirmos nossos colegas que protestam para receber salários, estamos todos com salários atrasados por causa desses políticos que acabaram com o estado do Rio.
_ Qual é a porcentagem de pessoas que pensam como você dentro da Polícia Militar? Chega a 10%.
Ele pensa um pouco.
_ Acho que uns 20%. Mas é difícil politizar a tropa, a maioria dos soldados nunca leu nada na vida. Eu costumo sempre mandar os soldados lerem, lerem qualquer coisa para ver se pegam o hábito. Indico até livros de guerra porque pelo menos eles estarão lendo. Mas é muito complicado.
_ Você já pensou em entrar na política, ampliar seus horizontes, tentar mudar as coisas, ser um contraponto ao Bolsonaro entre os militares?
_ Não sei... já pensei mas... não sei. Detesto esse Bolsonaro. Outro dia, na véspera da eleição passada, participei de um debate em que estava o filho dele, candidato a prefeito. Eu sabia que ele e o pai recebem dinheiro da Taurus (fabricante de armamento que fornece ao governo do Rio). Perguntei então o que ele achava da péssima qualidade das armas usadas pela polícia, que falham e provocam a morte de muitos policiais. Ele ficou todo embaraçado diante de uma platéia cheia de policiais. Foi engraçado.
_ E você não está marcado entre os oficiais por ser de esquerda?
_ Estou sim, querem me mandar até para o morro do Alemão comandar uma UPP.
_ Mas isso é mandar você para a morte! Estão atacando a polícia direto lá.
_ É, mas não sei o que vai acontecer. Talvez até as UPPs acabem antes disso...
A corrida chega ao final e me despeço do capitão. Desço do carro com uma ponta de esperança, ainda que seja uma pontinha tão pequena que quase não dá para enxergar.
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