Luis Felipe Miguel,
professor da UnB e coordenador do Demodê – Grupo de Pesquisa sobre Democracia e
Desigualdades
Não há rigorosamente nada de novo nas
últimas acusações contra Lula. As denúncias de recebimento de dinheiro ilícito
continuam sendo vagas, baseadas em presunções e incapazes de apontar vantagens efetivas que ele tenha obtido.
Por outro lado, há fartas demonstrações
de que o ex-presidente tinha noção de que era a corrupção que garantia a
“governabilidade” – alguém ainda não sabia disso? E também fica claro que Lula
desenvolveu uma forte camaradagem com as grandes empresas, algo que está longe
de lustrar sua biografia de líder popular, mas
que também não constitui surpresa para ninguém. (E, pelo que se vê até o
momento, também não constitui crime, é sempre bom ressaltar.)
No entanto, vejo muita gente acionando
o modo “meu mundo caiu”, como se fulminados por uma súbita decepção com Lula.
Alguns, por senso de oportunidade, como parece ser o caso de Paulo Henrique
Amorim. Outros, sucumbindo diante da campanha incessante da mídia.
Gostaria de poder dizer, como Millôr:
“Heróis nunca me iludiram”. Não seria verdade. Tive, como todo mundo, minha
cota de heróis pessoais. Ainda os tenho hoje, mas cuido para que estejam
mortos, de preferência há bastante tempo, o que evita surpresas desagradáveis.
Lula nunca foi um desses heróis.
Comecei minha militância política no antigo PCB, no finalzinho da ditadura. O
PT, recém surgido, era visto por nós como um instrumento para a divisão da
oposição ao regime militar (leia-se: PMDB). Lula, como um operário que não fora
capaz de superar uma mentalidade pequeno-burguesa.
A primeira crítica mostrava um
horizonte limitado. Sim, o multipartidarismo foi reinstaurado por decreto, em
1979, com o intuito de dar uma sobrevida ao partido de sustentação da ditadura,
a Arena (transformada em PDS). Mas a opção por manter os trabalhadores como retaguarda
de uma oposição com liderança burguesa inconteste era equivocada, como a
história mostrou.
A segunda crítica tem um ranço
autoritário. Como se a “mentalidade” correta fosse determinada de fora. Lula
não rezava pela cartilha da esquerda tradicional, é verdade, e foi crescendo
politicamente quando já era um líder conhecido, o que explica algumas
barbaridades de suas declarações iniciais. Mas cabe perguntar: um perfeito
apparatchik teria a capacidade que ele tinha e ainda tem de se comunicar com
sua base?
Quando o PCB se desmontou e se
transformou no PPS, eu encerrei minha militância partidária. Tornei-me (em
geral) eleitor do PT, mas nunca me filiei. Votei em Lula, votei em Dilma, mas
houve ocasião em que anulei o voto para presidente. Nunca votei nos candidatos
petistas ao governo do Distrito Federal. Para o legislativo, costumo votar em
candidatos de partidos à esquerda do PT.
Nunca elegi ninguém, então não me tive
chance de me decepcionar com minhas escolhas.
Tornei-me, como se vê, um cientista
político perfeitamente apartidário, quase apolítico, certamente neutro e
objetivo. Mas confesso que, às vezes, ao longo dos anos 1990, senti a tentação
de virar petista. Costumava brincar que eu tinha uma conexão mística com Lula:
cada vez que a tentação estava grande demais, ele fazia alguma coisa que me
levava a desistir.
Lembro que, em 1993 ou 1994, eu estava
praticamente com a ficha de filiação na mão quando Lula discursou no Nordeste e
disse que “o vermelho da bandeira do PT simboliza o sangue de Cristo”. Era
demais para mim, parei de pensar em filiação na hora.
Conto tudo isto para dizer que sempre
nutri por Lula um misto de respeito, admiração e crítica, em doses variáveis ao
longo dos anos. Lula não tem que nos
decepcionar, porque ele nunca se propôs ser algo diferente. Ele nunca foi um
revolucionário, nunca foi um socialista, e só se decepciona ao descobrir que
ele não o é quem nele projetou suas próprias fantasias.
A força de Lula e sua fraqueza provêm
da mesma fonte: seu enorme pragmatismo, sua capacidade de adaptação. Trata-se,
na verdade, de um traço produzido socialmente: os integrantes das classes
populares, sobretudo os submetidos às maiores privações, precisam disso para
garantir a própria sobrevivência. Lula ilustra aquilo que o historiador Robert
Darnton via no “homem da rua”, que aplica sua
inteligência e engenho para “se virar” num ambiente complexo, em transformação
e no qual ele se encontra em posição de desvantagem.
O lulismo é a tradução dessas
disposições num programa político. Limitado, adaptativo, mas marcado por um
genuíno desejo de responder às premências mais gritantes da população mais
pobre.
Quem procura um santo, deve procurar em
outro lugar, não na política, muito menos na política brasileira. Os santos, na
política, ou são logo reduzidos à insignificância ou, pior ainda, são santos
fajutos, falsificados (não estou me referindo especificamente a ninguém e da
minha boca não sairão as palavras “Marina” ou “Silva”.)
Não é o momento de chorar porque se
descobriu tardiamente que Lula virou lobista de empreiteira. A perseguição
judicial e midiática contra ele continua sendo um grave
atentado às liberdades e ao Estado do direito. Reagir contra ela não depende de
gostar do ex-presidente ou de suas políticas. É uma questão de defesa da
democracia.
O outro ponto é saber quem será Lula em
2018. Se ele for capaz de liderar uma frente de enfrentamento dos retrocessos e
estiver disposto a estimular a reativação do movimento popular, então estarei
com ele, apesar de todas as críticas. Mas se ele for simplesmente a saída para
a normalização do golpe e mesmo a tábua de salvação da elite política, como dão
conta os boatos recentes, então estarei contra, apesar de todo o respeito.
PS. Se é para se decepcionar com Lula, que não seja pelo depoimento de Emílio Odebrecht. Cada vez que leio trechos dele, tenho que dominar meu asco. Ele fala
sempre do alto de sua posição de grão-burguês,
revelando a cada frase sua condescendência e desprezo pelos trabalhadores
e seu desconforto, sua inconformidade com o fato de que um trabalhador pôde
chegar ao poder. É um monumento ao preconceito de classe.

Luis Felipe Miguel
ô-XENTE, CUIDADO, pois as palavras na cor vermelha constam originariamente no texto, mas os destaques e ênfases são deste BLOGUEIRO.
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