Dalmo
Dallari ao Blog da Cidadania: “15 de março não passou de uma ondinha”
Dando sequência à série de entrevistas que o Blog da Cidadania está
fazendo com pensadores de alta relevância sobre o momento político preocupante
por que passa o país, brindo os leitores desta página com a visão do eminente
jurista Dalmo de Abreu Dallari, de quem a
caudalosa obra é obrigatoriamente estudada em qualquer curso de Direito.
O professor Dallari
se encontra em Paris, neste momento, mas não se furtou a analisar para o Blog
temas como o protesto anti Dilma de 15 de março, os atentados a bomba ao PT, a
proposta de impeachment de Dilma Rousseff, o comportamento do STF, o
comportamento da grande imprensa, o comportamento do Ministério Público e muito
mais.
Quero agradecer ao
professor Dallari pela gentileza de, apesar de estar em Paris, ter respondido
com tanta minúcia às questões que esta página formulou. Este blogueiro e seus
leitores sentem-se honrados com a deferência de tão importante pensador
brasileiro.
Confira, abaixo, a
entrevista
Blog da Cidadania – Desde a campanha eleitoral do ano passado a
imprensa alternativa e a tradicional citaram vários casos de pessoas que foram
agredidas na rua por usarem roupas da cor vermelha, mesmo quando essas roupas
(em geral, camisetas) não tinham relação com partidos políticos, sindicatos ou
movimentos sociais. Como o senhor enxerga esse fenômeno? Quem protege essas
pessoas agredidas? Como garantir o direito de manifestação política, e que
punições podem ser aplicadas a quem agride física ou verbalmente quem faz – ou
parece fazer – manifestação política silenciosa como é o uso de uma cor que
lembre um grupo político ou uma ideologia?
Dalmo Dallari – A agressão praticada contra uma pessoa que participava de
manifestação pacífica é crime contra a pessoa, previsto no Código Penal, no
artigo 129. O fato de ter sido praticada a agressão durante manifestação
politica não é agravante nem atenuante. Assim, também, a alegação de que o
agredido usava camisa de uma cor determinada, que o agressor interpretou como
expressão de uma opção política, não tem qualquer relevância. O que cabe é
identificar o agressor e apresentar queixa na Delegacia de Policia da região,
ou, então, apresentar queixa dando elementos que permitam à Polícia
identificá-lo. Em circunstâncias como essa o agredido deve, imediatamente,
pedir providências ao policial mais próximo, o que facilita a identificação do
criminoso.
Blog da Cidadania – No último dia 15 de março, uma maré humana
tomou a avenida Paulista e outras capitais brasileiras pedindo impeachment da
presidente Dilma Rousseff. Tanto desta vez quanto nas anteriores que essas
manifestações ocorreram, parcela expressiva dos manifestantes pregou golpe
militar para atingir esse fim. As esperáveis manifestações de repúdio à ruptura
institucional não apareceram na grande imprensa e a pregação explícita de
violação da vontade das urnas não gerou nenhuma consequência para os
pregadores. Existe algum mecanismo para punir esse tipo de pregação? A
existência dessa pregação ameaça a democracia?
Dalmo Dallari – Antes de tudo, é importante assinalar que, confrontada com a
votação que, recentemente, deu o segundo mandato à Presidente Dilma, votação
superior a 54 milhões de votos, a « maré humana » da passeata de 15
de março não passou de uma « ondinha » muito leve, espetaculosa mas
insignificante como expressão da vontade politica do povo brasileiro. Alguns
cartazes e algumas faixas exibidos na ocasião deixam dúvida, apenas, quanto ao
que realmente expressavam : ignorância, burrice ou vocação totalitária muito
primária. Sobre os efeitos de um golpe militar a experiência recente do Brasil
é muito expressiva. O que se viu e o que se sabe é que o golpe prejudicou
seriamente a normalidade constitucional e foi instrumento de violências e de
muitas praticas de corrupção. Quanto à pregação de golpe militar,
que configura proposta de subversão da ordem constitucional, é crime
previsto na Lei de Segurança Nacional, que, embora feita durante a ditadura,
não foi revogada e o próprio Supremo Tribunal Federal já a considerou recepcionada
pela nova ordem jurídica, naquilo em que não contraria as normas
constitucionais. O que deve ser feito é o enquadramento dos autores dessa
tolice antidemocrática, para processamento pela prática do crime. Nesse caso a
identificação dos autores não deve ser dificil, pois muita gente filmou e
fotografou a prática criminosa.
Blog da Cidadania – No dia 15 de março, a sede do PT na cidade
de Jundiaí (SP) sofreu um atentado a bomba. Na mesma cidade, dois bonecos de
pano, representando a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, foram
“enforcados” em um viaduto. No Dia 26 de março, novo atentado a bomba contra o
partido, agora em São Paulo, na sede do diretório paulistano. Nesse cenário,
como o senhor vê a saúde da democracia brasileira e que nível de ameaça ela
pode estar sofrendo?
Dalmo Dallari – A prática de atentados contra instalações e símbolos políticos é
crime, previsto na Lei de Segurança Nacional, que continua em vigor naquilo em
que não contraria disposição da Constituição vigente. Essas práticas violentas
são reveladoras de um lamentável primarismo político e de falta de preparo para
a convivência civilizada, mas estão muito longe de representarem ameaça à ordem
constitucional.
Blog da Cidadania – Muito tem-se falado sobre impeachment da
presidente Dilma Rousseff. À luz das denúncias contra seu governo e do que se
sabe sobre a conduta dela, o senhor considera que há elementos para se falar em
derrubá-la? Se esse processo for levado à frente sob a argumentação de que o
julgamento via Congresso é “político” e, portanto, “dispensa provas”, o senhor
considera que esse caminho é constitucional? Se não for, que instrumentos
existem para barrar uma iniciativa que, nessa situação, configurar-se-ia como
golpista?
Dalmo Dallari – A proposta de impeachment de Dilma não passou de reação primária
de derrotados, inconformados com a derrota. Como já tem sido amplamente
demonstrado, nos termos expressos e claros da Constituição, em seu artigo 89, o
impeachment só pode ser cogitado se o Presidente da República praticar ato que
atente contra a Constituição. Deve existir um ato do Presidente enquanto
Presidente. Assim, alegar corrupção na Petrobrás para justificar o impeachment
é pura tolice e o que se pode afirmar, sem sombra de dúvida, que a conversa do
impeachment não passou de fantasia política de inconformados, sem a mínima
consistência jurídica.
Blog da Cidadania – O que o senhor considera que ocorreria com
a democracia brasileira caso um governo recém-ungido pelas urnas fosse
derrubado por fórmulas como a do “julgamento político que dispensa provas”?
Poder-se-ia dizer que o Brasil estaria vivendo uma ruptura institucional e
estaria sob um regime ilegítimo? O senhor considera que esse “julgamento
político” seria um golpe de Estado? O senhor acha possível que esse “julgamento
político” ocorra?
Dalmo Dallari – A experiência brasileira é muito eloquente: um golpe de Estado,
destituindo um governo legitimamente eleito, por vias democráticas, seria uma
agressão a todo o povo brasileiro, prejudicando direitos fundamentais de todo o
povo e de cada cidadão. Mas a verdade sobre o que foi a ditadura está cada vez
mais clara e por isso é pouquíssimo provável que ocorra uma tentativa de golpe.
Entre outras coisas, o golpe de 1964 foi o resultado de uma aliança de militares
fascistas com empresários gananciosos e primários, mas a prática demonstrou que
também os mais ricos perdem com a ditadura.
Blog da Cidadania – O Supremo Tribunal Federal deu tratamentos
opostos aos ditos mensalões tucano e petista. No caso envolvendo o PSDB, houve
desmembramento da ação, com o STF enviando para a primeira instância o caso do
ex-senador Eduardo Azeredo, apesar de ele ter renunciado com o fim de não ser
julgado naquela instância; no caso do PT, José Dirceu, entre outros, foi
julgado pelo STF mesmo sem foro privilegiado. Esse fato é compatível com o
regime democrático?
Dalmo Dallari – Foi lamentável a decisão equivocada, claramente equivocada, do
Supremo Tribunal Federal, de julgar acusados que não gozavam do foro
privilegiado. Ele julgou sem ter competência jurídica para tanto. Esse
equívoco, afrontando disposições constitucionais expressas, foi contrário ao
regime democrático e foi um mau momento do Supremo Tribunal Federal, que tem
por função precípua a guarda da Constituição. Continuo confiando no Supremo
Tribunal Federal e esperando que ele dê exemplo do respeito à Constituição e
acredito que hoje não se repetiria o equívoco.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento da
imprensa brasileira no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – É lamentável reconhecer isso, mas a grande
imprensa brasileira, em relação a vários temas, deixa perceber que tem
orientação influenciada por um direcionamento político. Assim, é mais do que
evidente que existe verdadeira obsessão contra o Lula, o petismo e qualquer
pessoa ou atividade que possa parecer ligada a isso, por simples coincidência
de algumas posições. Mas é positivo o fato de que a imprensa, embora tendo dado
mais espaço do que o razoável à fantasia do impeachment, não prega nem apoia um
golpe de Estado e dá certa contribuição, podendo dar muito mais, ao
aperfeiçoamento do regime democrático.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento do
Ministério Público no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – O Ministério Público foi extraordinariamente valorizado pela
Constituição de 1988 e, essencialmente, tem estado à altura de suas
responsabilidades, desempenhando com independência e firmeza suas atribuições,
que muitas vezes envolvem o enfrentamento com personalidades que ocupam
posições de prestigio na vida pública. Algumas vezes tem havido excesso de
rigor e desbordamento das limitações constitucionais, havendo algumas situações
excepcionais de omissão na proteção de direitos que lhe cumpre tutelar, mas o
Ministério Público tem dado contribuição muito relevante para a busca de
efetividade dos direitos consagrados na Constituição.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento da
Polícia Federal no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – A extrema diversidade de situações em que teve que agir ou
resguardar direitos torna difícil uma avaliação genérica da Polícia Federal.
Mas, numa síntese, ela tem cumprido bem seu papel constitucional e é merecedora
do apoio e da confiança do povo brasileiro.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento do STF
no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – Numa avaliação do conjunto de seu desempenho, o Supremo Tribunal
Federal tem atuado com independência, firmeza e competência, sendo hoje um dos
verdadeiros pilares de sustentação da ordem jurídica democrática consagrada na
Constituição de 1988. Ele pode e deve ser aperfeiçoado, para que, entre outras
coisas, possa desempenhar com eficiência e rapidez suas importantes
atribuições. Para tanto, venho sustentando a conveniência de que o Supremo
Tribunal seja convertido em Tribunal Constitucional e se concentre em seu papel
extremamente relevante de guarda da Constituição, deixando aos demais Tribunais
superiores as decisões que hoje sobrecarregam a Corte Suprema.
Blog da Cidadania – Professor Dallari, a partir dessas
respostas gostaria de aprofundar algumas delas em uma segunda entrevista, se
possível presencial. Quando seria possível?
Dalmo Dallari – Eduardo, na próxima semana já estarei de volta a São Paulo e
poderemos manter contato.
Blog da Cidadania – Professor Dallari, agradeço imensamente a
atenção. Ligo para o senhor na semana assim que estiver no Brasil.