quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

À sombra do desejo de adotar

Quando exploramos os motivos que levam as pessoas a querer um filho com auxílio do conhecimento psicanalítico, identificamos aspectos que costumam ser deixados à sombra dos discursos pessoais e coletivos dominantes. Ao aprofundarmos a reflexão sobre os processos de adoção, devemos contemplar também essas áreas sombrias, cujos conteúdos, quando trazidos à tona, mesmo não invalidando as intenções declaradas por seus protagonistas, podem elucidar problemas e propiciar soluções.

Seja o filho biológico ou não, ele começa a ser gestado muito antes, na fantasia e no desejo dos pais. Na visão de Sigmund Freud, um filho carrega muitas possibilidades: o filho que os pais queriam ter, de forma idealizada (filho ideal); o filho que os pais queriam ter sido (filho-dívida); o filho que não queriam ter sido (acerto de contas); o filho que vem com a missão de ser ou fazer tudo que os pais não deram conta de fazer ou ser, ou então para suturar a ferida narcísica da imortalidade, calcando o desejo de ser mãe ou pai em um desejo maior, de imortalidade do ego, por meio da transmissão da herança genética aos descendentes.

No filho adotivo existe, portanto, um luto pela não transmissão biológica de suas características. O filho adotado, por não ter traços que lembrem fisicamente os pais, pode expor menos o narcisismo dos pais. Os pais podem não se reconhecer nos filhos e perceber negativamente o jeito da criança, como não extensão de si mesmos. Cada um vê no filho o espelho de suas fantasias e, quando o filho é adotado, pode ser alvo de conteúdos projetados, em relação aos quais o filho biológico, na maioria das vezes, é poupado por sua condição de extensão narcísica dos pais.

As motivações para filiação, adotiva ou biológica, estão repletas de conteúdos psíquicos como abandonos, rejeições, expectativas e idealizações, rompimentos, uniões, negações e salvamento de vidas ou casamentos. É importante frisar, portanto, que não é só a criança a portadora de uma ferida narcísica, por ter sido “abandonada”: os pais adotivos também têm suas feridas.

Adotar é um termo latino que significa escolher, optar por, aceitar, acolher, perfilhar. A psicanalista francesa Françoise Dolto trata a adoção como enxerto: a criança é desenraizada de sua família e origem e será transplantada para outra família; suas raízes serão as da árvore de acolhida. Sua história é tecida na relação com os pais adotivos.

A antropologia nos ensina que as diferentes sociedades sempre lidaram, cada uma a seu modo, com a questão da reprodução, do engendramento e da filiação. De acordo com Françoise Héritier, a filiação é o laço social pelo qual a sociedade inscreve a criança em sua rede simbólica; as regras de filiação são criações artificiais e, nesse sentido, sua organização não é nunca naturalmente fundada. Ser filho de alguém, ter uma família, significa ter uma herança material e simbólica. A filiação define um lugar familiar e social (no cruzamento entre o particular e o geral).

Carregamos com o nome uma história, um lugar no desejo do outro. Ser filho de alguém deixa marcas fundamentais para a estruturação de um sujeito. Há um trabalho de subjetivação a ser feito por cada um de nós, que nos torna únicos, mas também nos une aos que nos precederam e nos permite desenvolver laços sociais.

Fonte: Jornal "LE MONDE" diplomatique BRASIL - Colunista Vania C.Sequeira, que é psicanlista, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-doutoranda da PUC-SP

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