sábado, 24 de novembro de 2018

Artigo sobre MAIS MÉDICOS. Pobres e mais Pobres SOFRERÃO ! ! !


Insultos que matam


Por Rômulo Paes*

Cuba decidiu se retirar do Programa Mais Médicos. Uma ação provocada pelas ameaças do novo governo em alterar os termos contratuais entre os dois países e a Organização Pan-Americana da Saúde. A crise trouxe de volta o debate sobre o salário dos médicos cubanos. 

A tributação sobre os salários diretos varia por país segundo o grau de retorno que o contribuinte recebe em politicas públicas e o quinhão que lhe cabe na distribuição da riqueza de um país.

Por exemplo, um médico sueco bem endinheirado chega a pagar quase 62% de imposto direto, enquanto um hondurenho paga menos que 13%. Países que garantem alto nível de proteção social são incrivelmente intrusivos na vida de seus cidadãos. Por exemplo, um cidadão sueco para registrar o nome de seu filho ou filha, deve submetê-lo com três meses de antecedência a uma agência especializada por conceder autorização para os registros. Isto visa a proteger a criança de eventuais nomes ofensivos ao seu desenvolvimento. 


Ainda que a Suécia garanta níveis excepcionais de proteção social para seus cidadãos e seja muito intrusiva, a presença do Estado sueco na vida de seus cidadãos não é comparável com um dos remanescentes regimes socialistas no mundo, como é o cubano. Os brasileiros conhecem pouco sobre a Suécia e menos ainda sobre Cuba. Este desconhecimento leva a um grande estranhamento sobre a forma como são tributados os médicos cubanos.

Lembrei-me de uma história saborosa que me foi contada pelo antropólogo Pierre Sanchis (que nos deixou em maio deste ano), que me serve para ilustrar este tipo de desentendimento. Pierre fez pós-graduação na Universidade de Paris nos fervilhantes anos da década de 70. Lá, foi aluno do filósofo marxista Nicos Poulantzas, cujas aulas eram concorridíssimas e assistidas pelos alunos com devoção. Durante uma exposição do filósofo grego sobre a necessidade de atualização do conceito de classes socais. Pierre atreveu-se a fazer uma pergunta um tanto surpreendente para o brilhante professor. Poulantzas fez uma pausa e perguntou: o senhor é marxista? O que foi negado de pronto por Pierre. O professor calmamente reagiu: bem, então, o senhor não vai entender. Continuou a aula, ignorando a pergunta. 

Segundo os artigos publicados nos jornais, um médico cubano recebe mensalmente por seu trabalho em seu próprio país o equivalente a 64 dólares. Em missão no Brasil, ele recebe R$3 mil por mês (25% de 11,5 mil Reais que o Brasil paga por cada médico), que aos valores de hoje correspondem 810 dólares - portanto mais de 12 vezes do que ganhariam em Cuba. Além disso, grande parte das despesas do dia a dia no Brasil são bancadas pelas prefeituras. Dessa forma, é fácil concluir que, ao final de 4 anos de contrato, um médico possa retornar ao seu país com uma poupança de mais de 20 mil dólares. O bastante para comprar muita coisa em uma economia ainda muito fechada como a cubana. Logo, o que surpreende não é o fato de se ter mais de 50 mil cubanos espalhados por 66 países prestando serviços diversos, sobretudo de saúde. O que surpreende é que seja possível se viver em Cuba com um salário de 64 dólares por mês!

É aí que entra a resposta que Poulantzas deu (ou deixou de dar) ao meu velho amigo e professor Pierre. 

Embora com a economia em frangalhos, decorrente de uma longa decadência, Cuba vai equilibrando sua economia com exportação de serviços, turismo e produtos agrícolas. A ajuda externa também é fundamental para a sobrevivência do país.

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O país tem aumentado a sua proximidade com a China e busca uma transição do seu modelo econômico para o heterodoxo e bem-sucedido modelo chinês.

O embargo imposto pelos EUA atrapalha muito a vida do país. Conta também o fato de Cuba ter um sistema político muito restritivo. A transição é lentíssima e cheia de conflitos internos. Mesmo assim, os cubanos têm acesso a vários serviços públicos de qualidade e mesmo alimentos (ainda que em permanente racionamento). Tocam a vida enquanto esperam as reformas econômicas. É uma lógica incompreensível para quem vive em um país como o nosso.

A formação dos profissionais de saúde cubanos tem como ênfase a atenção primária. Todos os médicos que vão para as missões internacionais possuem residência em medicina geral e comunitária. A deserção é relativamente baixa e muitos fazem várias missões.

Sua presença foi decisiva para o sucesso do Programa Mais Médicos em nosso País. Este Programa foi responsável por reduzir, já em 2014, o déficit de médicos no Brasil em 54%, como constaram Leonor Pacheco Santos, Ana Maria Costa e Sábado Girardi em uma pesquisa publicada em 2015, diminuindo desta forma a desigualdade no acesso aos serviços de saúde, sobretudo no Norte e Nordeste do Brasil.

Davide Rasella está concluindo um estudo que indica o efeito devastador na mortalidade por causas evitáveis caso o Programa Mais Médicos seja encerrado. 

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Os jornais indicam que os cubanos sairão todos até o dia 25 de dezembro deste ano. Certamente, encontrarão outros clientes já que estão presentes em países tão diversos como África do Sul, Portugal e Rússia.

Já o nosso Programa Mais Médicos vai custar a se reerguer já que os profissionais brasileiros não vão e não irão para as áreas mais pobres. 

O novo presidente ainda não aprendeu a diferença entre insultar como deputado e provocar desastres administrativos como presidente eleito. Ambos os casos se referem a narrativas políticas, do manejo das palavras. Contudo, convertem-se em ações de naturezas distintas.

No primeiro caso, gera mídia espontânea e nada mais. No segundo, doença e morte. Para a sorte do Brasil, seria melhor que ele aprendesse depressa.

Por fim, deveria terminar este texto, como o fez certa vez padre Antônio Vieira, pedindo desculpas por esta longa “missiva”, é que não tive tempo de ser breve.




Rômulo Paes de Sousa é epidemiologista e especialista em avaliação de políticas públicas, cujas áreas de interesse são: saúde e exclusão social, saúde urbana, saúde ambiental, avaliação do impacto de políticas sociais e sistemas de informação geográficos. É médico, especialista em medicina social (UFMG) e PhD em epidemiologia pela London School of Hygiene and Tropical Medicine (University of London). É Especialista em política, planejamento e gestão em saúde do Centro de Pesquisa René Rachou (Fiocruz Minas).

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