quinta-feira, 15 de novembro de 2018

ALGO surpreendente sobre o ORIXÁ Obaluaiê ! ! !

Aos formandos de História 2018/1


Certa vez, aprendi com uma estudante da UFF, a história do Orixá Obaluaiê, também conhecido como Omulu. Para quem não conhece, é aquele orixá representando pelo corpo vestido de palhas. 

A estudante que cursava História me ensinou em uma de nossas aulas que Obaluaiê era filho de Nanã com Oxalá. Nasceu com algumas doenças e tinha o seu corpo coberto de chagas e cicatrizes. Temendo que as pessoas não o aceitassem, Obaluaiê então, vestia-se com palha. 

Certa vez, passou por um povoado e pediu água para beber. Ninguém quis dar água para aquele corpo estranho e estrangeiro. Obaluaiê então, partiu com sede, mas o calor aumentou sob o povoado. O sol queimou a lavoura e o rio secou. 

Logo, o povo percebeu que a causa das mazelas daquele povoado surgiu no momento em que não deram água àquele que depois descobriram ser um orixá. Reuniram então, o pouco da água e da comida que tinham e foram levar a Obaluaiê, juntamente com seus pedidos de perdão. 

Obaluaiê então, aceitou os pedidos fazendo com que todos prometessem nunca negar o cuidado a quem precisasse. Só quem sofre sabe o peso da dor. Obaluaiê é o orixá do doença e da cura, do cuidado e do temor. 

Certa vez foi a uma festa, mas não quis aparecer para que os outros orixás não vissem as suas cicatrizes. Iansã, porém, a senhora dos ventos ficou curiosa para ver o que Obaluaiê escondia por baixo de sua roupa de palha. Iansã dançou, dançou. Dançou  até fazer vento forte, vento de tempestade. O vento levantou as palhas da roupa de Obaluaiê e todos os orixás viram um jovem bonito de brilho intenso que só se assemelha ao brilho do sol. 

Quando ouvi esta história, que aprendi em uma aula, lembrei das nossas feridas, das nossas cicatrizes. O Brasil há tempos tem muitas feridas abertas que doem em muita gente, enquanto outros buscaram por muito tempo escondê-las sob um mito de democracia racial, sob um mito de povo pacífico, sob um mito de anistia com justiça para todos, entre tantos outros mitos que se fizeram verdades nas nossas histórias. 

A escravidão, a ditadura civil militar, o descaso com a democracia nas favelas são algumas  destas feridas não cuidadas que agora aparecem sob o vento da tempestade que nos assola. 

Este vento fez cair a máscara da hipocrisia de quem defendia uma sociedade mais justa ou uma cultura de paz apenas para os seus. Fez cair a hipocrisia de muitos religiosos que estão buscando atirar a primeira pedra ou apontar a primeira arma, rompendo completamente com a mensagem de Jesus Cristo e com uma das histórias mais contadas nas religiões cristãs, quando no sermão da montanha, o mestre do cristianismo declarava bem aventurados os mansos e pacíficos. 

Estamos vendo cair as máscaras daqueles que continuam a preferir Barrabás e crucificar de vez a mensagem de amor e respeito defendida pelo profeta cristão ao contar que enquanto os fariseus discriminavam os samaritanos, era um samaritano que cuidava de um estrangeiro caído no meio da estrada.

 Enquanto os defensores da boa moral e dos homens de bem acusavam uma mulher de prostituição, era o líder do cristianismo que defendia esta mulher perguntando: quem não tiver pecado atire a primeira pedra. Quem não tiver pecado, atire. 

Vocês devem estar se perguntando por que tantas citações religiosas se não sou uma professora de História das religiões. Decidi falar aqui de duas religiões diferentes para  ressaltar o quanto o discurso do amor, se fazia até bem pouco  tempo, mais presente no  vocabulário religioso, enquanto o discurso de ódio frequentou durante muito tempo o vocabulário político. 

Sob os ventos de nossas tempestades atuais, o discurso de amor volta a frequentar o vocabulário político. Defenderemos o amor. Vamos pregar o amor. São estas apenas algumas das frases  cantadas em  manifestações políticas recentes. Enquanto isso, o discurso de ódio alcança novamente as religiões.  Aliás, Paulo Freire sempre nos falou de amor. Amor pela humanidade, amor pela potencialidade de cada um que habita a nossa sala de aula. 

Sob os ventos de Iansã, vivemos uma tempestade. O capitalismo não se sustenta mais como sistema social porque suas contradições alcançaram os seus limites. A propriedade privada não consegue mais conviver com a desigualdade sem que a violência da opressão do trabalhador não volte para o opressor. A democracia burguesa não consegue sustentar sua ideologia frente às conquistas de direitos das até então chamadas minorias. A natureza chegou no limite da exploração e tem respondido de tempos em tempos com catástrofes climáticas. 

Precisamos urgentemente fazer uma sociedade menos desigual. O poder hegemônico percebeu isso há tempos e recrudesce na extrema direita para garantir sua posição. Estamos nos deparando com as nossas feridas e cicatrizes.

E se formar como historiadores e professores de História durante esta tempestade não é nada fácil. Não sejamos ingênuos em achar que os próximos anos serão fáceis. 

Mas se formar durante a tempestade também pode ser uma forma de levantar as nossas palhas para encontrar o nosso brilho. 

Não podemos perder o brilho dos nossos olhos, encontrado nos bons encontros das salas de aula. E este brilho está na resistência cotidiana, na força do dia a dia das aulas de vocês. Nas aulas de história de vocês, a menina negra não vai diminuir o seu black. Nas aulas de história de vocês,  a filha da empregada não vai deixar de sonhar com a universidade. E vai ensinar a mãe dela que é preciso defender os direitos trabalhistas e que é preciso votar em quem não vota contra a empregada doméstica. Nas aulas de vocês o jovem gay não vai fingir ser outra pessoa apenas para agradar aos outros.

Nas aulas de vocês, o jovem que pensa diferente, mesmo que pense muito diferente do professor ou da professora vai ser respeitado como um portador de opinião, aprendendo assim a construir uma sociedade democrática que somente pode ser intolerante com o desrespeito aos direitos humanos construídos sob muita luta.

Pelas aulas de vocês, pretos e pretas, não vão sair da universidade, as mulheres não vão largar o mercado de trabalho, a comunidade lgbt não vai deixar de viver o seu amor. Manteremos juntos cotidianamente esta conquistas.

Nas aulas de vocês, a história do Brasil e do mundo não será um mero número, uma estatística de quantas mortes em uma guerra. 

As aulas de vocês serão habitadas pelas histórias de vidas do João Cândido, da Marielle, da Luiza Mahin e tantas outras histórias que não serão esquecidas, não retrocederão.

Não retrocederemos, não cederemos, não nos silenciaremos porque somos professores e professor nunca teve vida fácil.  Nos formamos aprendendo o que é desafio, o que é conflito e o que é contradição. Nossa profissão é sinônimo de luta. Nos alimentamos dela.  Colegas, bem-vindas e bem-vindos à luta"

Resultado de imagem para nívea andrade, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal FluminenseNívea AndradeProfessora Adjunta do Departamento Sociedade Educação e Conhecimento (SSE) da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Educação pelo Programa de pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROPED-UERJ). Possui pós-doutorado em Educação e Imagem pelo PROPED-UERJ, mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003) e graduação (bacharelado e licenciatura) em História pela UFF (2000). É Vice-coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Escola, Memória e Cotidiano (GEPEMC). Tem experiência nas áreas de Educação e História, com ênfase em Currículo, Estudos dos Cotidianos, História Social da Cultura e Ensino de História.

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