Resenhas
do cárcere
O segundo livro de João
Paulo Cunha
Por
Carol Pires *
No dia em que se apresentou na Papuda para cumprir
pena, o então deputado federal João Paulo Cunha – o primeiro político condenado
no mensalão – carregava um saco com roupas, lençol, toalha e escova de dente. A
completar a leve bagagem do cárcere, quatro livros. “Você percebe o que é a
cadeia quando o cara tranca a cela, vira as costas e leva a chave”, disse Cunha
recentemente, no escritório onde trabalha, em Brasília. “Você fica ali, você e
sua cabeça. Se não tomar cuidado, pira.”
A seleção de títulos era sugestiva: Ficções,
do argentino Jorge Luis Borges; Diário da Queda, do gaúcho Michel Laub; Operação
Banqueiro, do jornalista Rubens Valente; e Vermelho Amargo, do
mineiro Bartolomeu Campos de Queirós. Confinado com o ex-ministro da Casa
Civil, José Dirceu, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o ex-presidente
do PR Valdemar Costa Neto, Cunha lia algumas das obras “numa corrida só”.
Pelos seus cálculos, foram cerca de sessenta volumes durante um ano e vinte
dias de prisão em regime semiaberto.
“Depois, pensei: por que só ler?” Tempo não lhe
faltava. Ele, então, começou a anotar ideias num bloquinho. Como se tomado por
Antonio Gramsci, se animou a transformar suas reflexões em resenhas e a
dividi-las com o público. O resultado são os 21 textos críticos reunidos no
volume Janelas do Cárcere: Para quando Faltar Horizonte, ainda sem
previsão de lançamento. No livro, Cunha examina obras de autores como Leonardo
Padura, Chico Buarque e John Boyne. Mas não se trata propriamente de um
mergulho. O ex-parlamentar está mais para um nadador de águas rasas. Sobre o
romance de Campos de Queirós, por exemplo, anotou: “Lendo quietinho o livro na
cela que me abrigou, me vem a imagem de um artesão de palavras ensinando que
‘há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor’.”
João Paulo Cunha era um político em ascensão quando
o mensalão o abateu. Um dos fundadores do PT em Osasco, notabilizou-se
como o primeiro deputado do partido a presidir a Câmara e planejava disputar o
governo paulista. Em 2005, foi acusado de ter recebido 50 mil reais de propina
por contratar, pela Casa, uma das agências de publicidade de Marcos Valério,
operador do mensalão. Cunha até hoje nega as acusações: o dinheiro, sacado com
recibo assinado por sua mulher, teria sido pedido por ele ao tesoureiro do
partido para fazer pesquisas de opinião no interior paulista.
Mesmo sob o peso do escândalo, o então deputado
federal foi reeleito duas vezes, em 2006 e 2010, sempre como recordista de
votos em São Paulo. Almejava concorrer à prefeitura de Osasco em 2012 quando o
Supremo Tribunal Federal o condenou a seis anos e quatro meses de prisão, além
de lhe cobrar uma multa de 370 mil reais.
Os textos de Janelas do Cárcere seguem uma
mesma estrutura. Cunha começa contando como chegou até o título resenhado
(“Fuçando na biblioteca da Papuda, encontrei Cyrano de Bergerac”). Em
seguida, procede a um resumo comentado e conclui com seu parecer sobre o autor
e a obra. “Que livro bom”, ajuizou sobre O Drible, de Sérgio Rodrigues.
“Muito bem escrito e com um domínio completo, não só da língua, como do
roteiro. Um gol de placa!”
Certa vez, Cunha se interessou por um volume de
capa vermelha que alguém deixara para ele na portaria da Papuda. Era Os
Últimos Quartetos de Beethoven e Outros Contos, de Luis Fernando Verissimo.
“Li com prazer e num fôlego só essas 168 páginas”, registrou o resenhista, que
em seguida arriscou uma observação um tanto hermética: “Ao final, fiquei com
desejo de dizer ao Verissimo que ele ajuda o Brasil a pensar. É como Bille Holliday
cantando Strange Fruit no meio de uma batucada de japoneses. O bumbo faz
barulho, mas o piano encanta.”
Nos três meses de Papuda, Cunha conseguiu – assim
como Dirceu, Delúbio e Valdemar – ser empregado na biblioteca. Ali descontava
um dia de pena para cada três trabalhados. Embora preso já em regime
semiaberto, o ex-deputado demorou para conseguir desenrolar a papelada
que lhe permitia passar os dias fora da cadeia. Autorizado a trabalhar num
escritório de advocacia, começou a sair de dia e só voltava ao cdp, o Centro de
Detenção Provisória, para dormir. Chegava às seis da tarde e, às oito, quando a
biblioteca da carceragem abria, corria para ler e fazer as anotações. Às dez, a
luz se apagava e todos deviam se recolher. O petista compartilhava a cela com
outros 27 detentos, distribuídos em triliches. Sua cama era a do meio, entre um
traficante de cocaína e um condenado por oito assassinatos. Com uma lâmpada
focal improvisada na cabeceira, ainda conseguia ler um pouco mais.
Na cadeia, Cunha também aproveitou para escrever um
poemário intitulado Quatro & Outras Lembranças, que está na segunda
edição e não agradou a crítica – a Veja viu “rancor e banalidade” nos
versos do petista. “O livro foi lido com preconceito, por causa do mensalão,
que é grave mesmo”, transigiu o autor. A obra saiu pela Topbooks, a mesma
editora que deve lançar suas resenhas e que publicou Anônima Intimidade,
com poemas do presidente interino Michel Temer.
Aos 58 anos, usando óculos de acetato esverdeado
que lhe davam um ar mais informal do que quando era deputado, Cunha foi buscar
na estante um exemplar da coletânea de poemas. Instado a ler seus versos
preferidos, escolheu os de Lampejos do P6 – nome do pátio da Papuda em
que ele e outros detentos tomavam sol: Do ovo/um gosta da clara/o outro
gosta da gema./No amor um se declara/o outro vai ao cinema. “São bobos, mas
é meio Leminski”, disse, enquanto folheava o opúsculo.
Na página 83, deteve-se num poema sobre um cadáver
que termina com os seguintes versos: Vestia jeans da cor do céu/camiseta
branca paina/e um tênis de amarrar sem meias./Estava tão bonito ao encontrar a
morte. “Modéstia à parte, é um negócio legal”, regozijou-se o autor.
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