O golpe foi contra a democracia como
princípio de organização da vida social. Esse foi um golpe comandado pela
ínfima elite do dinheiro que nos domina sem ruptura importante desde nosso
passado escravocrata.
O ponto de inflexão da história recente
do Brasil contra a herança escravocrata foi a revolução comandada por contra elites
subordinadas que se uniram em 1930.
A visão pessoal de Getúlio Vargas
transformou o que poderia ter sido um mero conflito interno de elites em
disputa em uma possibilidade de reinvenção nacional.
O sonho era a transformação do Brasil em
potência industrial com forte mercado interno e classe trabalhadora protegida,
com capacidade de consumo. Nossa elite do dinheiro jamais sequer
"compreendeu" esse sonho, posto que "afetivamente" nunca
sentiu compromisso com os destinos do país.
Desde então o Brasil é palco de uma
disputa entre esses dois projetos: o sonho de um país grande e pujante para a
maioria; e a realidade de uma elite da rapina que quer drenar o trabalho de
todos e saquear as riquezas do país para o bolso de meia dúzia.
A elite do dinheiro manda pelo simples
fato de poder "comprar" todas as outras elites.
É essa elite, cujo símbolo maior é a
bela avenida Paulista, que compra a elite intelectual de modo a construir, com
o prestígio da ciência, a lorota da corrupção apenas do Estado, tornando
invisível a corrupção legal e ilegal do mercado que ela domina; que compra a
política via financiamento privado de eleições; e que compra a imprensa e as
redes de TV, cujos próprios donos fazem parte da mesma elite da rapina.
De acordo com a conjuntura histórica,
sempre que o Executivo está nas mãos do inimigo, imprensa e Congresso,
comprados pelo dinheiro, se aliam a um quarto elemento que é o que suja as mãos
de fato no golpe: as Forças Armadas antes, e o complexo jurídico-policial do
Estado hoje em dia.
A história do Brasil desde 1930 é um
movimento pendular entre esses dois polos. Getúlio caiu, como o desafeto
histórico maior desta elite, por um conluio entre Congresso comprado, imprensa
manipuladora e Forças Armadas que se imaginavam pairar acima dos conflitos
sociais.
O suicídio do presidente adia em dez
anos o golpe formal, que acontece em 1964 pela mesma articulação de interesses.
O curioso, no entanto, é que dentro das Forças Armadas existia a mesma
polarização que existia na sociedade.
INFRAESTRUTURA
O nacionalismo autoritário das Forças
Armadas articula, por meio do 2º PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) do
presidente Geisel, uma versão ambiciosa do sonho getulista: investimento maciço
em infraestrutura e setores-chave da vanguarda tecnológica com a disseminação
de universidades e centros de pesquisa em todo o país.
Ainda que o capital privado fosse muito
bem-vindo, a condução do projeto de longo prazo era do Estado. Foi o bastante
para que os jornais se lançassem em uma batalha ideológica contra a
"república socialista do Brasil" e os empresários descobrissem, de
uma hora para outra, sua inabalável "vocação democrática".
O processo de redemocratização comandado
pela elite do dinheiro tem tal pano de fundo. As Diretas-Já, na verdade,
espelham a volta da rapina de curto prazo e uma nova derrota do sonho de um
"Brasil grande".
Aqui já poderia ter ocorrido a
conscientização de que a rapina selvagem é o fio condutor, e que a forma
autoritária ou democrática que ela assume é mera conveniência. Mas o processo
de aprendizado foi abortado. O público ficou sem saber por que o golpe tinha
ocorrido e, depois, por que ele havia sido criticado. Criou-se uma anistia do
"esquecimento" no mesmo sentido da queima dos papéis da escravidão
por Rui Barbosa: para que jamais saibamos quem somos e a quem obedecemos.
Com o governo FHC, essa elite da rapina
de curto prazo se insere, enfim, não apenas no mercado, mas também, com todas
as mãos, no Estado e no Executivo.
A festa da privatização para o bolso da
meia dúzia de sempre, da riqueza acumulada pela sociedade durante gerações, se
deu a céu aberto. A maior eficiência dos serviços, prometida à sociedade e
alardeada pela imprensa, sempre solícita e sócia de todo saque, se deixa
esperar até hoje.
Como uma imprensa a serviço do saque e
do dinheiro não pode fazer todo mundo de tolo durante todo o tempo, e como
ainda existem sonhos que o dinheiro não pode comprar, o Executivo mudou de mãos
em 2002.
O novo governo tentou o mesmo projeto
desenvolvimentista anterior, de apoio à indústria e à inteligência nacional.
Mas seu crime maior foi à ascensão dos setores populares via, antes de tudo, a
valorização real do salário mínimo.
Os mais pobres passaram a ocupar espaços
antes exclusivos às classes do privilégio.
Parte da classe média sofria profundo
incômodo diante dessa nova proximidade em shopping centers e aeroportos, mas
"pegava mal" expressar o descontentamento em público. Pior, a classe
média temia que essa classe ascendente pudesse vir a disputar os seus
privilégios e os seus empregos.
O discurso da "corrupção
seletiva" manipulado pela mídia permite que se enfrente agora o medo mais
mesquinho com um discurso moralizador e uma atitude de pretenso "campeão
da moralidade". O que antes se dizia a boca pequena entre amigos agora
pode ser dito com a camisa do Brasil e empunhando a bandeira nacional. Está
criada a "base popular", produto da mídia servil à elite da rapina.
A luta contra os juros desencadeada pela
presidente Dilma em 2012 reedita a eterna crença da esquerda nacionalista
brasileira na existência de uma "boa burguesia", ou seja, a fração
industrial supostamente interessada em um projeto de longo prazo de
fortalecimento do mercado interno.
Mas todas as frações da elite já mamam
na mesma teta dos juros altos que permite transferir recursos de todas as
classes para o bolso dos endinheirados de modo invisível, funcionando como uma
"taxa" que encarece todos os preços e transfere parte de tudo o que é
produzido para os rentistas –inclusive da classe média feita de tola pela
imprensa comprada.
Quando em abril de 2013 as taxas de
juros voltam a subir, a elite está armada e unida contra a presidente. As
"jornadas de junho" daquele ano vêm bem a calhar e, por força de bem
urdida campanha midiática, transformam protestos localizados em uma
recém-formada coalizão entre a elite endinheirada e a classe média "campeã
da moralidade e da decência" contra o projeto inclusivo e
desenvolvimentista da esquerda.
Como os votos dos pobres recém-incluídos
são mais numerosos, no entanto, perde-se a campanha de 2014. Mas a aliança
entre endinheirados e moralistas de ocasião se mantém e se fortalece com um
novo um novo aliado: o aparato jurídico-policial do Estado.
Construído pela Constituição de 1988
para funcionar como controle recíproco das atividades investigativas e
jurisdicionais, todo esse aparato passa por mudanças expressivas desde então.
Altos salários e demanda crescente por privilégios de todo tipo associados ao
"sentimento de casta" que os concursos dirigidos aos filhos das
classes do privilégio ensejam transformam esses aparelhos que tudo controlam,
mas não são controlados por ninguém, em verdadeiros "partidos corporativos"
lutando por interesses próprios dentro do aparelho de Estado.
A manipulação da "corrupção
seletiva" pela imprensa é o discurso ideal para travestir, também aqui, os
mais mesquinhos interesses corporativos em suposto "bem comum". O
troféu de "campeão da moralidade pública" passa a ser disputado por
todas as corporações e se estabelece um conluio entre elas e a imprensa, que os
vazamentos seletivos cuidadosamente orquestrados comprovam tão bem.
Esse é o elemento novo do velho golpe
surrado de sempre. Ainda que o golpe tenha se dado no circo do Congresso em uma
palhaçada denunciada por toda a imprensa internacional, sem o trabalho prévio
dos justiceiros da "justiça seletiva" ele não teria acontecido.
O Estado policial a cargo da "casta
jurídica" já está sendo testado há meses e deve assumir o papel de
perseguir, com base na mesma "seletividade midiática", o princípio:
para os inimigos a lei, e para os amigos a "grande pizza".
A "pizza" para os amigos já
está em todos os jornais e acontece à luz do dia. O acirramento da
criminalização da esquerda é o próximo passo. Esse é o maior perigo. Muita
injustiça será cometida em nome da Justiça.
Mas existe também a oportunidade. Nem
toda classe média é o aprendiz de fascista que transforma seu medo irracional
em ódio contra os mais fracos, travestindo-o de "coragem cívica".
Ainda que nossa classe média esteja
longe de ser refletida e inteligente como ela se imagina, quem quer que tenha
escapado do bombardeio diário de veneno midiático com dois neurônios intactos
não deixará de estranhar o mundo que ajudou a criar: um mundo comandado por um
sindicato de ladrões na política, uma justiça de "justiceiros" que os
protege, uma elite de vampiros e uma sociedade condenada à miséria material e à
pobreza espiritual. Esse golpe precisa ser compreendido por todos. Ele é o
espelho do que nos tornamos.
foto de Roberto Parizotti/CUT
Jessé José Freire de Souza, 56 anos, autor de
"A Tolice da Inteligência Brasileira" (Leya), presidente do IPEA, é
professor titular de ciência política da UFF-Universidade Federal Fluminense, em
Niterói, RJ. Foi professor convidado na Universidade de Bremen na Alemanha.
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