Pesquisadora da UNICAMP e jornal inglês veem surto fascista no país
Quando alguém diz que há um surto fascista no Brasil, não são só
as pessoas conservadoras e/ou assumidamente de direita que se incomodam. Até
pessoas autoproclamadas de esquerda acham exagero. Não é o que pensam, porém, o
diário inglês Financial Times e uma pesquisadora da Unicamp.
Nas primeiras horas do último dia 10 de
janeiro, o site da publicação britânica divulgou reportagem intitulada como (em
tradução livre) “Neonazismo no Brasil desafia mito da democracia racial da
nação”.
A reportagem se baseia em monitoramento da
internet realizado pela antropóloga e pesquisadora da Unicamp Adriana Dias,
quem tem dedicado a vida à etnografia do neonazismo no Brasil.
Para quem não sabe, etnografia é estudo
descritivo de grupos sociais, de suas características antropológicas, sociais
etc., e o neonazismo é uma forma de fascismo.
A última medição da pesquisadora mostrou que
o número de sites que veiculam informações de interesse neonazistas subiu 170%,
saltando de 7.600 para 20.502. No mesmo período, os comentários em fóruns sobre
o tema cresceram 42.585%.
O aumento do comportamento nazifascista no Brasil vem chamando
tanta atenção que o diário inglês Financial Times – que tem mais de 2 milhões
de leitores mundo afora e foi fundado há mais de um século – produziu uma
reportagem que você irá ler a seguir em tradução um tanto quanto capenga, mas
que dá para entender perfeitamente.
Neonazismo no Brasil desafia mito da democracia
racial da nação
10 de janeiro de 2017
Por Joe Leahy
Quando o policial
brasileiro Paulo César Jardim lançou uma série de inspeções às casas de
supostos neonazistas no Estado do Rio
Grande do Sul, revelou uma trama bizarra.
O movimento
neonazista do país, com seu mundo secreto de suásticas, propaganda de ódio e
violência nas ruas, estava sendo recrutado por extremistas de direita na
Ucrânia para lutar contra rebeldes pró-russos na guerra civil do país europeu.
A Divisão
Misantrópica da Ucrânia, um grupo de extrema-direita alinhado com o Batalhão
Azov, um grupo paramilitar ultranacionalista alinhado com Kiev, estava por trás
da campanha de recrutamento, alegou o Sr. Jardim, o principal caçador
neonazista do Brasil.
Uma pessoa foi detida
junto com 47 cargas de pistola de 9mm nas invasões de dezembro. Mais tarde ele
foi libertado. A polícia ainda estava investigando se os brasileiros já haviam
se juntado à luta na Ucrânia, disse ele, negando-se a elaborar mais.
“Tínhamos consciência
de que alguém tinha vindo da Europa. . . Um italiano. . . Tinha vindo ao Brasil
para recrutar pessoas para a Ucrânia “, disse Jardim ao FT.
A revelação, se
comprovada, de que os movimentos ultranacionalistas subterrâneos do Brasil
buscam experiência de combate no exterior é um desenvolvimento preocupante em
um fenômeno que chocou um país que se considera um caldeirão racial.
O surgimento de
neonazistas no Brasil tem desafiado um mito popular de que o racismo, pelo
menos a variedade evidente em exibição nos EUA e outros países ocidentais, não
existe lá. Com mais de metade da população reivindicando pelo menos alguma
herança africana, os brasileiros se orgulham das relações relaxadas entre os
diferentes grupos raciais do país. Mas tem havido um fluxo constante de ataques
nos últimos anos.
Apenas no ano
passado, os neonazistas atacaram uma banda de punk que defendia direitos iguais
e homossexuais com facas e tomahawks.
Enquanto
a extrema-direita ainda é vista como a margem da política em um país que se
libertou de duas décadas de ditadura militar apenas em meados dos anos 80, os
políticos ultraconservadores e seus partidários estão dispostos a preencher um
vácuo político que se desenvolveu após o julgamento de agosto da ex-presidente
Dilma Rousseff, dizem analistas.
Bolsonaro nega ser neonazista
Jair Bolsonaro,
congressista de extrema-direita e ex-capitão do exército brasileiro, conquistou
as manchetes no ano passado por elogiar um conhecido torturador da era da
ditadura. Também no ano passado, um grupo de ultraconservadores invadiu o
Congresso e revelou bandeiras pedindo o retorno do governo militar.
Bolsonaro negou ser
neonazista, mas os críticos o acusam de compartilhar muitos pontos de vista do
movimento, como o racismo e a intolerância.
“Nunca imaginei que o
neonazismo fosse possível no Brasil porque este é o país do futebol, o país do
carnaval. . . Nós somos um povo feliz “, disse Jardim.
A fortaleza do
neonazismo no Brasil é o sul e sudeste do país, do Rio de Janeiro e de São
Paulo ao Rio Grande do Sul, regiões que receberam a maior parte dos imigrantes
alemães, italianos e poloneses do Brasil.
Enquanto a América do
Sul também era conhecida por ter recebido nazistas fugindo da derrota da
Alemanha de Hitler na segunda guerra mundial, os movimentos neonazistas não têm
relação com esses indivíduos e, em sua maioria, surgiram de sites de ódio na
Internet.
O Brasil, com 200
milhões de habitantes, tem 150 mil “simpatizantes” envolvidos em movimentos
neonazistas, segundo um artigo da antropóloga Andriana Dias da Unicamp.
“A violência expressa
por esses grupos, seja em ataques físicos a negros, judeus ou homossexuais, ou
a disseminação de sua literatura de ódio. . . Tem exigido nos últimos anos
muito trabalho. . . Em termos de investigação e condenações “, escreveu ela.
Um dos casos mais
marcantes ocorreu em Porto Alegre, em 2005, no 60º aniversário do fim do
Holocausto, quando um grupo de neonazistas armados com facas atacou judeus
comemorando o evento, ferindo gravemente várias de suas vítimas.
Em casos mais
recentes, os skinheads têm como alvo os gays na Avenida Paulista, a principal
via pública em São Paulo. Em 2011, três skinheads foram condenados por tentar
matar quatro pessoas, incluindo uma pessoa negra com um membro protético, com
bastões e facas.
Desde o atentado de
2005 em Porto Alegre, a polícia do Rio Grande do Sul adotou uma atitude mais
preventiva, prendendo e interrogando suspeitos antes que pudessem chocar suas
parcelas, disse Jardim. Houve até 50 acusações nos últimos 15 anos,
acrescentou.
Esta foi a abordagem
utilizada na investigação da Ucrânia – chamada Operação Azov após o suposto
envolvimento do grupo paramilitar da Europa Oriental.
Sr. Jardim disse que
quando ele trouxe suspeitos para interrogatório, como ele fez durante a
Operação Azov, ele muitas vezes tentou convencê-los que seu credo estava fora
de lugar em um país cujos heróis incluíam futebolistas da Copa do Mundo
Ronaldinho, Ronaldo e Romário – preto. Mas eles raramente mudaram de ideia.
“Estes não são
criminosos comuns ou ladrões, eles têm uma ideologia. São pessoas que acreditam
na limpeza étnica, na pureza racial“, disse ele.
Reportagem adicional
de Mark Rachkevych na Ucrânia
É uma bomba. Grupos neonazistas brasileiros
estariam indo ao exterior buscar treinamento militar. Ao mesmo tempo, o diário
inglês – insuspeito de ser “comunista” ou “petralha”, já que é uma publicação
conservadora que criticava muito a política econômica de Dilma Rousseff –
coloca Jair Bolsonaro como líder de um movimento que, na tese do veículo
inglês, estaria para praticar ações armadas no país.
É preocupante e espantoso que o jornal
conservador, voltado para negócios e crítico de políticas econômicas como as
dos governos do PT no Brasil, faça a primeira associação de peso entre
criminosos neonazistas comuns e os movimentos políticos que derrubaram Dilma
Rousseff de uma forma que foi questionada por toda a grande mídia internacional
e por legiões de juristas e personalidades mundo afora.
A associação é lícita, já que os métodos de
militância de grupos como Vem Pra Rua, Movimento Brasil Livre e de lideranças
políticas como a família Bolsonaro guardam profunda relação com o nazifascismo
– ou neonazismo, para quem preferir.
A militância neonazista a que o FT se refere
pode ser vista nas agressões nos espaços públicos a pessoas e personalidades de
esquerda que encarnam hoje os comunistas que Hitler perseguiu tanto quanto aos
judeus. Sucedem-se relatos de pessoas sendo agredidas física e moralmente nas
ruas do país só por despertarem suspeitas de serem de esquerda ou “petistas”.
Ao mesmo tempo em que líderes políticos como
Bolsonaro e congêneres insuflam violência e ódio, como no caso da comemoração
das chacinas em presídios que levantaram em seus discursos públicos, grupos
organizados praticam ataques racistas a celebridades como forma de propaganda
neonazista, nazifascista ou como preferirem chamar.
O nazifascismo cresceu tanto que até membros
do governo golpista recitam teorias análogas à “solução final” de Hitler como
se estivessem declamando um poema de amor, como foi o caso de um secretário do
governo Temer que pediu “uma chacina de presos por semana”.
Tão preocupante quanto as denúncias do FT e
da combativa pesquisadora Adriana Dias – quem, há mais de uma década, luta
contra a ascensão nazifascista no Brasil – é a minimização que surge sempre que
se faz um alerta de que as coisas estão para sair de controle.
Foi assim com as manifestações de junho de
2013 e foi assim com os avisos de que havia risco de um golpe parlamentar no
Brasil. Houve displicência dos setores pensantes da sociedade quanto à
possibilidade de golpe. E sobre o risco que significava ir à rua protestar
contra não se sabe o que ao lado de qualquer radical disposto a marchar por
alguma coisa, mesmo sendo um neonazista.
O nazismo já foi subestimado uma vez. Hitler
foi produto da irresponsabilidade dos setores pensantes da sociedade alemã dos
anos 1920, que não o levaram a sério e viram nele meios de a burguesia se
livrar dos comunistas.
Encerro o post propondo uma reflexão àqueles
que minimizaram antes e continuam minimizando os riscos à democracia.
A cena no vídeo que você vai ver a seguir é
do cult movie “Cabaret”, de Bob Fosse (1972), com Liza Minelli e Michael York.
Simboliza o modo como a ideologia nazista foi tomando conta das pessoas a
partir do apelo à natureza, às belezas da pátria e a um futuro de glória.
Em um almoço paroquial, o personagem de
Michael York comentava com um amigo da burguesia alemã que os nazistas eram
ridículos e jamais chegariam ao poder, mas que antes de serem descartados
ajudariam os ricos a se livrarem dos comunistas.
Eis que um jovem alemão típico (loiro, alto,
olhos claros) e fardado se levanta e começa a entoar uma canção patriótica,
Tomorrou Belongs To Me (o amanhã me pertence). O público se encanta e começa a
cantar junto, tomado pela emoção patriótica.
Ao fim da cena, um dos burgueses pergunta ao
outro se após a demonstração de força ainda achava que os nazistas não seriam
problema. Eis o autoengano que atirou o mundo em uma das maiores catástrofes da
história. Assista ao vídeo e lembre-se: já subestimamos o nazifascismo uma vez.
E bastou.
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