Pós-impeachment:
como explico a alguém no inferno que a vida pode ser pior ?
Uma velha senhora me recebeu em sua humilde casa, na tarde desta sexta,
aqui no interior do Maranhão. Contou com detalhes a história do filho,
assassinado a mando de um fazendeiro que o escravizara.
Perguntei se esperava por Justiça. Com resignação, balançou a cabeça
negativamente. O que ela quer é o direito de enterrar o corpo do filho, que
nunca lhe foi entregue. E, consequentemente, uma certidão de óbito para que o
neto, que veio ao mundo em meio ao desaparecimento, tenha, ao menos no papel,
um pai. Quiçá uma pensão para que o menino, abandonado depois pela mãe, possa
ter algum alento.
Ao final, quando deu a mão na despedida, me olhou e perguntou baixinho
se eu achava que a vida de seu neto seria melhor que foi a de seu filho.
A garganta deu um nó. E eu, que milito no combate ao trabalho escravo há
mais de 15 anos, respondi o máximo que pude no momento: um silêncio e um
sorriso.
Sabe o pior de tudo? Os mais pobres, que não foram às ruas nem a favor,
nem contra o impeachment, e que acompanham bestializados pela TV ou pelo rádio
os desdobramentos de nossa crise política, são os que mais vão sofrer a partir
de agora.
Em nome do crescimento econômico e de alguma visão deturpada e egoísta
de desenvolvimento, visando a alegria e o bem estar dos mais ricos, estamos
prestes a limar alguns dos poucos direitos que garantem que as camadas mais
vulneráveis da população não se afundem ainda mais na merda. Pois as medidas se
concentram em retirar do andar de baixo e preservar o andar de cima.
O Palácio do Planalto e o Congresso Nacional planejam rasgar direitos
trabalhistas e previdenciários e, ao mesmo tempo, impor limites para
investimentos em educação – alardeada, hipocritamente, como a saída para os
problemas nacionais, mas que é a primeira a sofrer cortes quando lucros e
dividendos correm perigo.
Há, pelo menos, três projetos tramitando no Congresso Nacional para
mutilar o conceito de trabalho escravo. Ou seja, erradicar o crime retirando
elementos que o configuram. Os projetos contam com o apoio de associações
empresariais, agropecuárias, industriais e comerciais, incluindo até alguns
patos amarelos, que vêm no combate a esse crime um prejuízo a seus negócios.
Parlamentares ruralistas afirmam que o conceito atual de escravidão
contemporânea presente no artigo 149 do Código Penal gera ''insegurança
jurídica''. Querem que as condições em que se encontram os trabalhadores, por
mais indignas e desumanas que sejam, não importem para a caracterização do
crime, mas apenas se a pessoa experimentou grilhões, correntes e pelourinho.
Ao mesmo tempo, o governo Michel Temer apontou como uma de suas
prioridades a aprovação do projeto 4330/2004, que amplia a terceirização e
legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem as atividades
para as quais as empresas foram constituídas (atividades-fim) e não apenas
serviços secundários, como é hoje. As relações deixam de ser entre patrões
e empregados, previstas e tratadas pelo direito do trabalho, e serão entre
empresas e empresas pessoais (''pejotização''), como se ambas fossem livres e
iguais entre si.
Pelo projeto, a empresa contratante deve arcar com os direitos
trabalhistas dos empregados da contratada quando esta não for capaz. Na
prática, pelo que já acontece, isso terá que ser resolvido na Justiça – se e
quando o trabalhador decidir reclamar. A espera pode levar anos até uma
decisão. E no caso de trabalho análogo ao de escravo, em que muitas fazendas e
empresas se utilizam de cooperativas e empresas fajutas em nome de prepostos
para burlar direitos trabalhistas, esse projeto vai facilitar a impunidade das
contratantes que, no máximo, terão que bancar salários atrasados, mas sem
punição pelos escravos libertos.
Por fim, o governo Temer propõe que a idade mínima para se
aposentar seja de 65 anos. Enquanto a expectativa de vida de um homem no
Maranhão é de, em média, 66. Ou seja, se um trabalhador não é derrubado pela
violência de jagunços e latifundiários que operam na mesma lógica desde sempre,
não viverá o bastante para desfrutar a própria aposentadoria apesar de ter,
muitas vezes, acabado de se trabalhar em atividades pesadas e insalubres.
Agora, de frente ao computador, consigo escrever a resposta que não pude
dar à velha senhora no Maranhão – se a vida de seu neto será melhor que a
de seu filho assassinado. Caso o país siga o curso em direção às
nuvens sombrias que se avizinham no horizonte e se a resistência
popular for espancada pela polícia e taxada de terrorista pelo poder público,
a resposta é não.
Não, seu neto pode sim vir a ser escravo. Não, seu neto pode sim vir a
ser assassinado por reivindicar salários não pagos por alguém mais rico. Não,
seu neto pode sim se transformar em um arquivo empoeirado em algum canto na
Justiça porque não contará com caras bancas de advocacia. Não, o mundo que seu
neto vai herdar pode sim ser tão ruim quanto este em que seu filho viveu. Não,
a vida dele pode sim ser tão ruim ou curta que a do pai.
Leonardo
Sakamoto
É jornalista e doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o
desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP,
foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova
York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor
da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas
Contemporâneas de Escravidão.
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