terça-feira, 21 de novembro de 2023

O que AGUARDA o povo argentino ! ! !


 Uma visão argentina 

por Rodrigo Arreyes*


"Por aqui, enquanto ao meu redor alguns duvidavam, eu não conseguia duvidar do que parecia certo: o Bolsonaro argentino, Milei, iria ganhar."

Hoje é feriado aqui na Grande Buenos Aires e, por isso, tudo parece quieto. É o primeiro dia após a vitória do Javier Milei, presidente escolhido por mais de 11% sobre o  seu rival, Sergio Massa. Ainda no sábado, os jornais falavam de indefinição, provável empate ou fraude por poucos votos, após a humilhação intelectual sofrida pelo neovidelista no  debate presidencial.

Por aqui, enquanto ao meu redor alguns duvidavam, eu não conseguia duvidar do que parecia certo: o Bolsonaro argentino, Javier Milei, iria ganhar. Vou tentar explicar por que eu não duvidava e descrever uma visão nascida aqui na Grande Buenos Aires. Visão e não televisão —não televisada— porque nem tudo está dito nos números ou em registros fidedignos: podemos ler o ar, escrever com um olhar, seguir a fundo um pressentimento sem nome, enfim, o que passe por nosso corpo, para estarmos na nossa inevitável realidade e tomarmos decisões.

Eu não vi o triunfo do Milei como um profeta nas pedras, nos cantos dos pássaros, nas estrelas ou nos meus sonhos, mas foi algo que pressenti como a queda de um asteroide em uma abominável imagem da nossa Argentina que aqui venho a denunciar. Dias atrás, dobrando uma esquina, vi um grupo de quatro ou cinco crianças, meninos e meninas, que, em vez de brincar, arrancavam cartazes do Sergio Massa. Logo mais, na volta do meu trajeto, ao observar os cartazes arrancados, percebi que as crianças também haviam desenhado um pênis pequeno na boca da foto de cada cartaz do candidato. Quem não lembra de atos semelhantes no Brasil dos últimos anos? O que provoca semelhante situação?

Estas crianças poderiam ser as mesmas da propaganda destas eleições que mostravam outra chave, a propaganda da chamada “campanha do medo para o grupo das mães”, como ironizado pela ultradireita argentina. No spot do Sergio Massa, aparece a situação que atinge a vida de milhões de jovens hoje em dia, que é a chegada tóxica dos discursos fascistas através de celulares. Vemos em cada vídeo uma mãe tirando o celular do filho ou filha, enquanto Milei dá seus discursos de ódio promovendo a venda de órgãos ou comparando o Estado com um professor pedófilo. Algumas das frases do Milei que foram refletidas ou poderiam ser parte dos spots: “O papa é o representante do diabo na terra”; “Uma empresa que polui um rio, qual é problema?”; “A venda de órgãos é um mercado mais” ou  “entre o Estado e  a mafia, eu prefiro a mafia”.

As crianças que eu vi aqui na Grande Buenos Aires e os spots massistas revelam uma chave, acredito, consequência das múltiplas formas de abuso legalizado, que atingem as infâncias e adolescências, em várias partes do mundo. Esta forma de abuso é promovida por empresas (e “usuários”) que também são a plataforma dos governos de ultradireita, além de um estilo de vida que fere o futuro das pessoas invadindo cada palavra que deixamos registradas para as colheitas do marketing digital.

Discursos de ódio, transfobia, machismo, xenofobia, anticomunismo, nazismo e pedofilia, militarização da infância, etc., por fora de qualquer controle, formam parte do dia a dia desta geração que parece crescer nas sombras do que consideramos realidade. E lá está ela, na caverna invisível dos lares, imitando o que a pós-pandemia deixou aos pais, professores e cuidadores. Como com as infâncias e adolescências, o cuidado não deveria ser através de telas, sistemas de vídeo-vigilância ou outras tecnologias amplamente conectadas com sistemas de abuso e expansão do autoritarismo e a insensibilidade! É uma questão que não compete de nenhuma forma só às “mães” como apontado pela direita machista, como se tal preocupação pelos celulares fosse “ridícula”, a favor da leitura engraçada da situação.

O cuidado que impede o acesso desses discursos de ódio, creio, foi passado por alto por vários dos responsáveis não só no campo virtual, por exemplo, pela justiça argentina, que durante o albertismo trouxe o indulto dos genocidas da Operação Independência; ou educadores, que também durante o albertismo conviveram com práticas negacionistas e nacionalistas como as promovidas pelo prefeito Diego Valenzuela, quem por anos realizou multitudinárias promessas à bandeira argentina em  centros de extermínio de Tres de Febrero. A juventude argentina, nessa eleição, seguiu a flauta de Hamelin, essa música ouvimos alguns professores ao conversar na sala de aula.

Como apontado em "O estado e o individuo sob o nacionalsocialismo" por Marcuse, nos acampamentos promovidos pela Kraft durch Freude era sistemático o uso da pornografia com judeos, a ruptura dos tabús sexuais e outras formas semelhantes de abuso visual ou insensibilização que hoje se atualizam e chegam ao mais íntimo das pessoas como se fossem “piadas” o “para matar o tempo”; o objetivo era promover a obediência extrema.

Parece inocente: estamos preparados para desligar o celular e mudar o rumo? Difícil, principalmente para os mais vulneráveis e invisibilizados pelas formas ingênuas de pensar os problemas da nossa sociedade. O resultado é que o capitalismo, além de devorar as nossas forças de trabalho, instala cada vez mais as suas estruturas nos nossos sonhos mais íntimos, perdendo assim os poucos os direitos alcançados com grandíssimos esforços.

Neste caso, Argentina, uma sociedade que viveu anos de ensinamentos sobre direitos humanos com base no acontecido na sua própria história, que, pelo visto, se inclinou (em grande parte, puxada pela juventude) por esquecer, negar e violentar os incríveis caminhos abertos pelo exemplo das Mães das Praças de Maio e outras organizações que tanto nos orgulham e sempre merecerão o máximo reconhecimento, inclusive (ou ainda mais) nas derrotas.



*Rodrigo Arreyes nasceu em San Martín, Província  de Buenos Aires, Argentina, e morou desde criança no Jaçanã, zona norte de São Paulo. É formado em Letras pela Universidade de Buenos Aires e atualmente  pesquisa a obra de Lima Barreto, além de estudar Especialização em Tradução Literária, ambos também pela mesma universidade. Participou da Antologia Outsider I (Editorial Outsider) e em 2012 publicou a nouvelle “Manifestación de todo lo visible” (Editorial Simulcoop). Seu trabalho também se direciona para a área da justiça para as vítimas da ditadura brasileira. Durante o período ditatorial no Brasil (1964-1985), seu tio ‘Quinho’, militante negro, foi perseguido e sequestrado pela ditadura.

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