FOFOCAS, GARGALHADAS,
ROMANCE E DIVERSÃO DE MONTÃO: AS ESTRELAS DA MÍDIA ENCONTRAM SEU PRESIDENTE
Glenn
Greenwald, Thiago Dezan - 15 de Novembro de 2016, 16h30
SEIS JORNALISTAS
ENTREVISTARAM o Presidente Michel Temer ontem à noite no
programa Roda Viva da TV Cultura. Cinco deles eram estrelas da mídia dominante
que incitaram incansavelmente o impeachment da Ex-presidente Dilma Rousseff e,
portanto, foram responsáveis pela ascensão de Temer ao poder: O Globo, Folha,
Estadão (um representante do jornal e outro do conglomerado do qual o jornal
faz parte) e Veja (cujo
representante é também âncora do Roda Viva). O sexto jornalista
faz parte da própria TV Cultura, rede de televisão pública que já foi vítima
de pressões de políticos de importância como José Serra, o
chanceler do governo Temer, e
cuja verba de publicidade foi reduzida pelo governo.
A lista de jornalistas escalados para a
entrevista foi bizarra, mas previsível. Quando um presidente empossado é
entrevistado somente por veículos que defenderam o processo de impeachment que
o levou ao poder, é inevitável que a conversa decorrente mais se assemelhe a um
churrasco animado entre amigos do que a uma entrevista contenciosa (um deles, Ricardo Noblat, d’O Globo, já havia
submetido tanto o Presidente quanto sua esposa a esta
implacável apuração jornalística):
Uma coisa que eu jamais observara: como
Temer é um senhor elegante. Quase diria bonito. A senhora dele, também.
Outra jornalista presente, Eliane Cantanhêde, do
Estadão, certa vez saiu em
defesa de Temer sugerindo que
seus críticos estariam traindo o país: “Mas o esforço para derrubar Temer, neste momento, é trabalhar contra o
Brasil”.
Além disso, qual o propósito de uma rede de
televisão pública como a TV Cultura – supostamente uma alternativa à mídia
dominante com fins lucrativos – se acaba por oferecer uma plataforma para esses
mesmos veículos de comunicação corporativos em momentos jornalísticos de
tamanha importância?
A entrevista foi iniciada com um tom
relativamente sério, porém, extremamente amigável. No primeiro bloco, foram
feitas diversas perguntas relevantes, como: por que o grande aliado de Temer,
Romero Jucá, comprometido pelas gravações de Sérgio Machado, se tornará líder
do governo no Senado e se são verdadeiras as alegações de que Temer recebeu R$
10 milhões da Odebrecht em doações de campanha ilegais. Ainda assim, não foram
realizadas perguntas complementares após as respostas do presidente, nenhum
pedido de esclarecimento foi feito sobre as perguntas que foram descaradamente
evadidas e muito pouco esforço foi colocado na elucidação das diversas
contradições e alegações infundadas de Temer. Essa foi a parte boa da entrevista.
A PARTIR DAÍ, O
ENCONTRO decaiu para um nível tão fútil e constrangedor que foi preciso assistir à
entrevista diversas vezes para crer no que os olhos viam. Com o passar dos minutos, ficava cada vez mais
claro que o político e os jornalistas, que evidentemente o adoram, se
inclinavam a um terno abraço coletivo. Quando
a entrevista chegou ao terceiro bloco, já estavam todos gargalhando e rindo com considerável pujança das piadas insossas do presidente,
como fazem empregados de baixo escalão na primeira semana de emprego para
agradar o patrão. Assistindo à entrevista, era possível se sentir como uma
mosca na parede de um coquetel de gala da família real, onde os convidados de
honra – não completamente bêbados, mas relaxando à medida que incrementavam o nível
etílico com taças e mais taças do mais requintado Chardonnay – exploravam os
limites da decência no comportamento social.
No quarto e último bloco, as estrelas da
mídia pareciam tão cansadas de manter a máscara jornalística, que optaram por
deixá-la cair, libertando-se completamente. Ao fim do caloroso bate-papo, o
grupo fofocava com o presidente sobre seu palácio preferido, seu estilo
antiquado de oratória que lhe confere um charme invejável, o primeiro encontro
com a esposa Marcela e como se apaixonou por aquela que viria a ser mãe de seu
filho, e seus ousados planos para o mundo literário.
Por pouco, Temer não perdeu o contato com
Marcela, sua atual mulher, depois de tê-la conhecido. É o q ele conta no Roda
Viva, logo mais.
Se um desavisado começasse a
assistir à entrevista sem saber quem é Temer, poderia facilmente achar que o
entrevistado era um vovô simpático, famoso por suas melodias delicadas de Bossa
Nova, em vez do líder político profundamente impopular que chegou à presidência
através do controverso impedimento de uma presidente eleita democraticamente,
que milhões de brasileiros consideram um golpe, e diversas instituições e
líderes de todo o mundo considerem um ataque à democracia.
COMO RESULTADO DA
CONVERSA FIADA, inúmeras questões cruciais foram
ignoradas. Os jornalistas perguntaram diversas vezes a Temer se ele pretendia
concorrer à eleição em 2018, mas ignoraram – como a mídia
dominante sempre faz –
o fato inconveniente de que o TRE o declarou “ficha suja”. Embora tenham
mencionado Serra quando falaram dos problemas da Venezuela, não demonstraram
interesse no depoimento de Odebrecht, em que o Ministro das Relações Exteriores
de Temer é acusado de receber
R$ 23 milhões em um banco suíço, uma vez que o assunto não foi
mencionado. A confissão recente de Temer a banqueiros internacionais em Nova
York, de que o impeachment foi
motivado por Dilma se recusar a
aceitar as reformas econômicas propostas pelo PMDB, também foi completamente
ignorada (acompanhando o completo descaso da mídia perante essa importante
revelação).
O fato de que a maioria do país rejeita
Temer e deseja seu impeachment foi algo que também escapou ao julgamento dos
jornalistas. Embora o atual colapso financeiro do Rio de Janeiro tenha sido
mencionado, isso serviu apenas para perguntar a Temer qual é seu plano para
salvar os cariocas, ignorando o fato de que foi
seu partido que governou tanto o estado quanto a cidade nos últimos anos. Os jornalistas tampouco
encontraram tempo para perguntar ao presidente sobre o consenso entre
economistas ocidentais que acreditam que o caminho mais perigoso que pode ser
tomado por um país enfrentando crescimento econômico baixo ou negativo é a
austeridade: exatamente o que está sendo imposto por Temer.
Mesmo que a entrevista tenha sido trágica, o
que se seguiu conseguiu superá-la nesse quesito. Em uma transmissão ao vivo pelo Facebook,
todos os jornalistas elogiaram e parabenizaram uns aos outros pelo excelente
trabalho, como se comemorassem a vitória de seu time do coração. No meio da
celebração da conquista do campeonato, o próprio Temer, sorrindo como pinto no
lixo, olhando direto para a câmera, ofereceu ao público da rede social uma das
poucas declarações honestas do encontro: “Eu cumprimento vocês por mais essa
propaganda.” Arrancando, mais uma vez, gargalhadas subservientes de seus
subalternos jornalistas.
No começo do ano, a respeitada organização
Repórteres Sem Fronteiras rebaixou
o Brasil para a 104ª posição em seu ranking de liberdade de imprensa – atrás de países como Chile,
Argentina, El Salvador, Nicarágua, Peru e Panamá – em parte, porque a mídia
dominante é controlada por um número ínfimo de famílias extremamente ricas,
além de serem usados para fins de propaganda e ativismo político, em vez de
jornalismo. Fora a reconstituição dramática com ares de novela das oito das
gravações de Lula e Dilma, a palhaçada vergonhosa que foi transmitida ontem à
noite foi a caracterização mais fiel, e lamentável, dessa triste dinâmica até o
momento.
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