A MORTE DO MEU AMIGO
POC: LEMBRANÇAS DO DIPLOMATA QUE HONROU O ITAMARATY
Por
Ricardo Kotscho
Na
manhã desta sexta-feira(10), recebi a notícia da morte do diplomata Paulo César de
Oliveira Campos, o POC, aos 67 anos, em São Francisco, na Califórnia.
Deixei de lado os assuntos sobre os quais pretendia escrever
nesta coluna, sempre os mesmos, e geralmente muito desagradáveis nos últimos
tempos, para prestar uma singela homenagem a este amigo do peito, um ser humano
da melhor qualidade, que honrou o Itamaraty por onde passou, qualquer que fosse
o governo.
“Fala com o POC”, a sigla do chefe do cerimonial do primeiro
governo Lula, sempre que aparecia um problema e a gente não sabia o que fazer.
Discreto, objetivo, sem frescuras, sempre atento a tudo o que se
passava nas viagens internacionais do presidente, profundo conhecedor do seu
ofício, POC era o nosso guia seguro nas conversas de Lula com os principais
líderes mundiais da época.
Éramos quatro os que sempre acompanhavam Lula nas viagens pelo
Brasil e pelo mundo: POC, o general Gonçalves Dias, chefe da segurança, Ricardo
Stuckert, o fotógrafo oficial, e eu, secretário de imprensa.
A gente sacaneava muito um ao outro nas cansativas agendas que
não deixavam tempo nem para ir ao banheiro.
POC era muito duro no cumprimento dos protocolos da diplomacia,
algo que não era fácil com um presidente indisciplinado como Lula e seus
assessores, que nunca tinham trabalhado em governo, como eu.
Como o general Dias era muito lhano no trato com as pessoas,
cheguei sugerir que os dois trocassem de função.
Aí resolvi sacanear o POC, sempre bravo com os repórteres que
cobriam a presidência.
Certa vez, a repórter Zileide Silva, da Globo de Brasília, veio
me perguntar sobre o roteiro de uma viagem que o presidente faria no exterior.
“Fala com o POC, que ele tem todas informações. Mas tem que
falar alto com ele porque o POC é meio surdo”.
Zileide falou alto com ele, o POC não entendeu nada, e eu fiquei
de longe, só para ver a reação dele.
No dia seguinte, durante uma cerimônia no Palácio do Planalto,
dei um toque no POC, quando cheguei perto do general Dias, que na época era
apenas coronel.
Dei-lhe um tapão na careca, Dias levou o maior susto, botou a
mão na cintura e me alertou:
“Seu moleque, você poderia ter levado um tiro…”
Não me aguentei e lhe respondi, falando sério:
“Coronel, me desculpe, mas eu não poderia deixar de fazer isso,
a ditadura acabou…”
Ele riu. E somos amigos até hoje.
O general deve ter ficado muito triste com a morte do POC porque
eles eram unha e carne, cada um no seu papel.
Governo, qualquer governo, é um ambiente muito tenso, sempre
encarando alguma crise, e se a gente não faz isso não aguenta.
Mas também tem suas compensações, como quando fizemos uma escala
não programada, para abastecimento do avião em Kiev, na Ucrânia, em viagem à
China.
Informado da nossa escala, às seis da manhã, o presidente do
país mandou convidar a comitiva do Lula para um café da manhã no palácio.
Já estava todo mundo meio morto da longa viagem, mas só POC não
reclamou.
“Vocês vão ver o que nos espera…”
De fato, o governo ucraniano nos ofereceu um café da manhã que
nunca vou esquecer na vida.
POC conhecia o seu homólogo, o chefe do cerimonial do governo da
Ucrânia, e na nossa mesa fomos servidos como príncipes.
Champanhe, peixes defumados, caviar à vontade, foi uma festa.
Difícil foi nos acordar, cansados e quebrados, quando chegamos à
China.
Fomos salvos pelo Geraldo Alckmin, então governador de São
Paulo, que fazia parte da comitiva e nos indicou uma casa de massagistas cegos.
Era uma coisa estranha, porque a massagem foi feita só apertando
os pés, de modo cada vez mais forte, o que me fazia gritar de dor.
Quanto mais me doía o aperto das mãos do massagista, mais ele
sorria. Foi mais de uma hora nesse suplício.
O intérprete me explicou o que estava acontecendo:
“É que cada vez que ele acerta o ponto da dor que você sente no
teu corpo, ele fica feliz”.
POC também só dava risada, sem nenhuma compaixão.
Saí de lá levitando, sem sentir dor nenhuma,
À noite, diante do magnífico banquete de mil pratos exóticos
oferecido pelo governo chinês, até comi cérebro de macaco, e achei bom.
Fazia muito tempo que não me encontrava com o amigo POC para
lembrar dessas histórias.
Depois de passar pelas embaixadas do Brasil em Washington, Tóquio
(duas vezes), Bonn e Londres, antes de trabalhar no governo Lula, POC foi
nomeado embaixador em Madri, e depois em Paris.
Assim que assumiu o governo e nomeou o terraplanista Ernesto
Araújo para destruir o Itamaraty, disposto a mudar a política externa do país,
Bolsonaro transferiu POC da embaixada de Paris para o consulado em São
Francisco, na Califórnia.
Foi lá que POC morreu hoje, depois de uma longa batalha contra o
câncer de pulmão, logo ele que não fumava, como eu.
Vou sentir muito a falta desse amigo, que não via há muito
tempo, embora ele tenha me convidado muitas vezes para visitá-lo em Madri e
Paris.
Fico te devendo essa, meu bom amigo.
Olhando em volta, tenho cada vez menos amigos de verdade como
POC, Dias e Stuckhinha, os dois que também não vejo há tanto tempo.
Foi um tempo bom que vivemos juntos, quando o Brasil era mais
feliz, mais respeitado no mundo inteiro, e a gente ainda podia brincar um com o
outro, mesmo trabalhando no governo.
POC foi um diplomata que honrou o Itamaraty, hoje tão vilipendiado.
Eu sou testemunha disso.
Vida que segue.
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