Os sócios do vírus
Ninguém a desejava, mas há quem se beneficie da pandemia
O vírus, no entanto, não
fez apenas vítimas. Ao longo desse tempo, angariou também muitos sócios.
Ninguém desejava a pandemia, mas há quem mais do que sobreviver, está a tirar
vantagem dela. Na política e na economia, as desigualdades pregressas só se
acentuam com as medidas governamentais.
A queda de juros, por
exemplo, melhora a vida de todo mundo, mas beneficia muito mais a das grandes
empresas que, em condições de emitir debêntures (dívidas) com taxas mais baixas
do que aquelas que vigoravam antes da pandemia, se capitalizam não
necessariamente para investir agora, mas para largar na frente quando a
atividade voltar. Até porque da sucessão de reformas trabalhistas pré-pandemia
às medidas provisórias mais recentes, as empresas puderam reduzir custos
trabalhistas.
Mas não são apenas as
medidas do governo que produzem sócios do coronavírus, mas a falta delas. O
presidente Jair Bolsonaro se elegeu, em grande parte, não para mudar o Estado
mas para dizimá-lo. A covid-19 mobilizou as atenções e facilitou a tarefa em
áreas como o meio-ambiente, como tão bem traduziu Ricardo Salles na reunião
ministerial de 22 de abril. Um mês depois, os dados do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que o ministro escancarou a passagem da
boiada, com um aumento de 55% no desmatamento no primeiro quadrimestre do ano
em relação ao mesmo período de 2019.
Nas selvas urbanas da
periferia a ausência de uma política de segurança pública também facilitou a
sociedade entre o vírus e a letalidade policial. Com menos circulação de
pessoas nas ruas, os policiais ganharam, finalmente, o ansiado excludente de
ilicitude do bolsonarismo. O Rio teve o abril de maior letalidade policial dos
últimos 18 anos. Em São Paulo, as mortes em conflitos com a presença de
policiais cresceu mais de 50%. A pandemia facilitou o cumprimento do ideário
bolsonarista “na dúvida, atire”. Mas isso não impediu que o Centrão se valha da
situação para pressionar por mais um cargo de primeiro escalão no governo, a
Pasta da Segurança Pública.
Durante a pandemia, o
bloco não apenas se acercou de órgãos cujos gastos têm impacto direto nas
prefeituras, como FNDE e Funasa, como se aproximou do ministro do
Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, recentemente desfiliado do PSDB e
titular de outro manancial de obras, e avançou para aumentar seu domínio sobre
agências reguladoras.
Uma delas, a Agência de
Vigilância Sanitária, é uma das maiores chanceladoras da carteirinha de sócios
da pandemia. É sobre a Anvisa que os atravessadores de respiradores
superfaturados fazem pressão contra o licenciamento de aparelhos baratos
desenvolvidos nas universidades. É a agência também que chancela a licença para
a comercialização, nas farmácias, de um dos embustes da pandemia, os testes
rápidos. Tão caros quanto ineficientes, os testes fizeram a festa de algumas
indústrias farmacêuticas, sócias da tragédia desde o apogeu da cloroquina.
Se as sessões remotas
adotadas na pandemia permitiram a aprovação de projetos importantes para a
sobrevivência de milhões de brasileiros, como o auxílio emergencial, tem também
favorecido a concentração de poder nas mãos do Centrão. Em decisões cada vez
mais monocráticas, os líderes decidem a pauta e controlam as votações remotas
com possibilidades restritas de debate ou obstrução. Se o cerco dos milicianos
sobre o presidente da República aumenta o cacife do bloco, é pela condução da
pauta remota de votações que seus líderes exercem redobrado poder.
O repique da covid-19 no
Distrito Federal já arrisca prolongar ainda mais o funcionamento remoto do
Congresso. O governador Ibaneis Rocha, um dos primeiros a adotar medidas
restritivas, liberou a cidadela do poder antes da hora e possibilitou um novo
pico que hoje ocupa nove de cada 10 leitos de UTI privados. Ibaneis não se
mostra disposto a arredar o pé para a abertura total do Distrito Federal no
início de agosto, mas o repique pode impedir que o Congresso Nacional o faça.
Com a consultoria do
ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, já se estudavam as medidas para o
retorno, com a presença facultativa dos parlamentares do grupo de risco,
medição de temperatura e sem confirmação digital do voto. O adiamento das
sessões presenciais, porém, não prejudica o Centrão. Na verdade, até ajuda.
Com as sessões remotas,
as comissões e os conselhos de ética da Câmara e do Senado não funcionam. Com
isso, se contêm as pressões para que sejam analisadas as representações lá
protocoladas contra Eduardo e Flávio Bolsonaro. Com o adiamento se evitaria que
a retomada dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal em agosto, tenha
repercussão nas Casas. É depois do recesso que o STF deve mandar voltar para a
primeira instância o processo que investiga a rachadinha no gabinete do
ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro.
Foi na casa de um dos
expoentes do Centrão, o deputado e ex-ministro Marcos Pereira
(Republicanos-SP), que representantes do bloco e os presidentes da Câmara,
Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, receberam o senador Flávio
Bolsonaro, o mais afável e mais encrencado dos filhos do presidente. Na versão
de um dos participantes, a ideia era mostrar ao presidente da República que não
havia predisposição, entre os comensais, contra seu primogênito. Só faltou
Flávio Bolsonaro sair de lá com um cartão de visitas de cada um: “Guardiões de
seu mandato”.
Até as eleições
municipais é assim que pretendem se fazer valer. Até lá, além da prorrogação do
auxílio emergencial, vão tratar de arrancar dos cofres públicos dinheiro
suficiente para prefeitos e vereadores inundarem a campanha de cestas básicas.
É pelo assistencialismo, outro acionista desta tragédia, que o Centrão pretende
fazer a festa da situação.
Passadas as eleições,
contados mortos, feridos e desempregados, terá chegado a hora de a assembleia
de acionistas decidir se o presidente Jair Bolsonaro ainda deve se manter na
condição de sócio majoritário desta pandemia.
Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor desde a fundação do jornal em maio de 2000. Foi editora de política por 15 anos do jornal. Hoje mantém a coluna semanal de política iniciada em 2000 e a coluna quinzenal ‘gps’ no caderno EU & Fim de Semana.É autora do e-book “Os candidatos” (Companhia das Letras, 2014). Integrou a equipe que fundou a revista "Época”. Foi editora de Política da "Gazeta Mercantil", subeditora da revista "Veja" e repórter do "Jornal do Comércio".É formada em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e em História pela Universidade Federal de Pernambuco. É mestre em Política Comparada pela Universidade de Paris I e em Política Latino-Americana pela Universidade de Londres.
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