"Caravanas", novo
disco de Chico Buarque, ilumina personagens femininas e dramas sociais do
Brasil
Álbum chegou na sexta-feira(25) às lojas e plataformas digitais
Por
Foto: Leo Aversa / Divulgação
Há quase 40 anos, 39
exatos, começou a polêmica das "patrulhas ideológicas". Em agosto de
1978, Cacá Diegues, em entrevista, usou essa expressão para referir-se àqueles
que ficavam controlando a ação dos outros, como patrulhas de polícia. Pela mesma
época, fazia sucesso, de Caetano, Odara, que pelas mesmas patrulhas era
interpretada como um "desbunde", uma desistência da luta política.
Chico não estava no centro dessa bronca, Caetano sim.
Agosto de 2017, Chico lança nas redes Tua
Cantiga, a primeira canção do novo CD, Caravanas,
em que a voz que canta, o personagem ali a expressar-se, se diz capaz de largar
mulher e filhos para ficar com ela, aquela que pode chamá-lo a qualquer
momento. Com a mesma combinação de rapidez e truculência que temos visto,
Chico, ele mesmo (não a voz de sua canção), é tachado de machista irremissível.
Caetano vem à boca do palco imaginário das mesmas redes para dizer que neste
afoxé lento Chico é o mesmo gênio de outros tempos. Não entra na polêmica,
burra como quase sempre tem sido.
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Tua Cantiga é outra parceria de
Chico com Cristóvão Bastos, que em 1987, 30 anos atrás, tinha rendido a excelsa
maravilha de Todo o Sentimento, exatamente, aquela do tempo da delicadeza,
aquela que ainda permitia a hipótese de um reencontro, em outro momento:
"Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei como encantado /
Ao lado teu".
Mas agora, três décadas
mais velho, o cancionista não vê mais esse futuro por diante: "Quando eu
não estiver mais aqui / Lembra-te, minha nega / Desta cantiga / Que eu fiz pra
ti".
O Chico deste 2017 está lançando um disco memorável, mais uma joia
na coroa que vem oferecendo aos ouvintes do português há mais de 50 anos (Pedro
Pedreiro foi composta em 1965). Nunca como agora suas personagens femininas são
evanescentes, inefáveis, um sopro: a terceira canção do novo álbum se chama A Moça do Sonho (com Edu
Lobo), que foi vista à contraluz e já passou.
O tempo passa mais vezes aqui. Passa vigoroso, mas em registro
imperceptível: quando deu pra ver, já era. Nunca como agora o cancionista Chico
Buarque é irmão do romancista Chico Buarque. Desde Estorvo,
de 1992, o escritor já mostrava esta outra face do seu talento narrativo: em
lugar de personagens palpáveis, mesmo quando esquivos (Carolina talvez seja o
paradigma), personagens e situações narrativas em que não raro o leitor sai sem
conseguir decidir se acabou de presenciar um sonho mau ou uma tristeza por
assim dizer real.
O disco tem ao menos três canções de alta potência. Uma é Jogo de Bola, um samba
difícil, que vai se desenrolando numa forte tensão entre as frases melódicas e
as frases de palavras, umas fugindo das outras ou se reencontrando onde e
quando já nem se esperava mais.
É mais uma canção cuja matéria-prima é a experiência viva do
futebol, de um lado, e é também a mitologia do futebol: "Em priscas eras /
Quando Púskas eras", por exemplo. Também no fute amigo o tempo passou logo
ali, velha Carolina.
Parceria com netos Chico Brown e Clara Buarque
Outra é Massarandupió (nome
de uma praia baiana, diz o google), que traz a graça sublime e complicada de
ser uma parceria entre Chico e seu neto Chico Brown, sim, filho do Carlinhos.
Que estranha emoção nos invade ao testemunhar essa talvez passagem de bastão,
com uma geração falhada, numa canção que fala da meninice? "Devia o tempo
de criança ir se / Arrastando até Escoar, pó a pó¿.
(Ainda tem regravação de Dueto,
canção lá do tempo das patrulhas ideológicas, 1979, agora com a voz feminina
sendo feita por outra neta, Clara, e a letra ganhando uma nova estrofezinha,
para dizer que o amor consta, além de nos astros e búzios, no whatsapp, no
facebook, no tinder...)
E tudo converge na portentosa As
Caravanas. Mescla de samba abolerado com momentos de funk, a melodia
inamistosa vocaliza "a gente ordeira e virtuosa" que não aguenta ver
o pessoal do subúrbio chegar à mesma praia dela. Essa caravana de
"suburbanos tipo muçulmanos", na mão do Chico, emparelha os pobres de
muitas partes do mundo, que a gente "de bem" gostaria que fosse de
volta "pra favela, pra Benguela, pra Guiné¿, numa caravana meio igual ao
navio negreiro, o tumbeiro de outro dia.
É isto: empatia como
sempre, canções lindas como tantas outras, com um sentido de urgência implodida
no encontro com os netos, tudo disposto ao assobio nosso de qualquer dia.
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