Neste período do ano,
ocorre um dos maiores espetáculos da fauna brasileira: marrecos migram em massa
para o hemisfério norte em busca de refúgio. Eles também buscam fugir de
predadores naturais – como a justiça soberana brasileira e os holofotes
chamuscados da imprensa de cativeiro.
Holofotes
chamuscados são perigosíssimos e costumam ofuscar a imagem brilhosa de casais
de marrecos no cio. Justiça soberana é quase um predador em extinção, mas
devido às intempéries setentrionais e a matança generalizada de animais
silvestres via queimadas criminosas no Pantanal, ela voltou a mostrar algumas
leves garras nas suas patas corroídas pelo fogo e pelo medo.
Resta
comovente, no entanto, a fuga desesperada desses espécimes (na Arca de Noé,
também foi assim): antes de alçarem voo, de maneira insinuante, eles se
refestelam na lama tóxica da história para se autovitimizarem e se tornarem
ainda menos atraentes para o abate (há muitos pistoleiros de carabina recém
nomeados para cortes superiores sedentos pela mira robusta de um casal de
marrecos amedrontados).
Dentre as razões
inusitadas para o voo desesperado dos marrecos brasileiros, está também a
surpreendente fuga do calor tropical. Aves civilizadas, em geral, migram em
busca de calor. Aves subdesenvolvidas – como o marreco brasileiro – migram em
busca do frio. O frio e a aridez estrangeira servem-lhes de proteção natural
contra seguidores violentos de marrecos arrependidos.
Há
singularidades, no entanto. Marrecos brasileiros não dominam muito bem o idioma
estrangeiro.
Sentem comovente
dificuldade para enunciar palavras relativamente simples como “Massachusettts”
e até mesmo palavras básicas de seu dialeto nativo, como “cônjuge”.
A rigor, eles grasnam
numa espécie de língua híbrida, algo entre o português caipira e o inglês de
escolas de idiomas.
Marrecos, no entanto,
são aves relativamente dóceis, quase inofensivas (inócuas, eu diria). Não
aceitam provocações. Aliás, não aceitam porque têm sérias dificuldades de
interpretação de texto. Ficam perdidos na tradução. Costumam produzir piracemas
de falácias em peças condenatórias e tuítes cifrados sem o menor sentido –
inclusive, chegam a recolher tuítes, por vergonha e misericórdia.
Um dos traços mais
perturbadores dos marrecos migratórios é, ainda, a oscilação de seu canto. Um
marreco migratório em idade adulta e em fase de acasalamento chega a produzir
mais de 200 tons em uma única sentença proferida, dando margem a muitas
interpretações e provocando verdadeiras revoadas de sentido e coerência.
Costuma-se dizer que
marrecos não cantam nem grasnam: esganiçam.
No cio, chegam a
produzir sons inaudíveis, verdadeiras odes ao ‘resguardo selvagem’ e à repulsa
sexual. Costumam ser identificados na literatura técnica do ‘marrequismo
aplicado’ como detentores de um surpreendente ‘repelente natural’ que os
imuniza contra o assédio sexual da espécie.
Em outras palavras: são
cafonas e bregas.
A migração dos
marrecos, para concluir, é um espetáculo real da natureza selvagem que se
alastrou impávido pelo mundo político animal brasileiro. Muitos animais da
elite sul-americana chegaram a depositar esperanças que um espécime desses
marrecos migratórios pudesse chegar ao posto de rei dos animais.
Doce ilusão. A natureza
covarde da sub-espécie é inexorável, ainda mais quando o cerco
histórico-climático começa a se fechar.
Para os que ficam,
resta a contemplação bucólica – e melancólica – da revoada claudicante dessas
aves traiçoeiras. Como seus primos blindados, os tucanos, elas predam
territórios e populações inteiras e depois saem à francesa, como se nada
tivesse acontecido.
Pode parecer apenas o
destino deletério de seres repulsivos e asquerosos. Mas trata-se, mesmo, do
curso natural do mundo selvagem – que reserva a fuga como única opção para
espécimes pestilentos, inúteis e pulverizados pela lama tóxica da história.
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