domingo, 11 de outubro de 2020

Juizeco . . . FUJÃO... c l a r o ! ! !


“Migração de marreco”

pelo linguista Gustavo Conde


Neste período do ano, ocorre um dos maiores espetáculos da fauna brasileira: marrecos migram em massa para o hemisfério norte em busca de refúgio. Eles também buscam fugir de predadores naturais – como a justiça soberana brasileira e os holofotes chamuscados da imprensa de cativeiro.  

Holofotes chamuscados são perigosíssimos e costumam ofuscar a imagem brilhosa de casais de marrecos no cio. Justiça soberana é quase um predador em extinção, mas devido às intempéries setentrionais e a matança generalizada de animais silvestres via queimadas criminosas no Pantanal, ela voltou a mostrar algumas leves garras nas suas patas corroídas pelo fogo e pelo medo.

  

Resta comovente, no entanto, a fuga desesperada desses espécimes (na Arca de Noé, também foi assim): antes de alçarem voo, de maneira insinuante, eles se refestelam na lama tóxica da história para se autovitimizarem e se tornarem ainda menos atraentes para o abate (há muitos pistoleiros de carabina recém nomeados para cortes superiores sedentos pela mira robusta de um casal de marrecos amedrontados). 

 

Dentre as razões inusitadas para o voo desesperado dos marrecos brasileiros, está também a surpreendente fuga do calor tropical. Aves civilizadas, em geral, migram em busca de calor. Aves subdesenvolvidas – como o marreco brasileiro – migram em busca do frio. O frio e a aridez estrangeira servem-lhes de proteção natural contra seguidores violentos de marrecos arrependidos.  

Há singularidades, no entanto. Marrecos brasileiros não dominam muito bem o idioma estrangeiro.

 

Sentem comovente dificuldade para enunciar palavras relativamente simples como “Massachusettts” e até mesmo palavras básicas de seu dialeto nativo, como “cônjuge”.  

 

A rigor, eles grasnam numa espécie de língua híbrida, algo entre o português caipira e o inglês de escolas de idiomas. 

 

Marrecos, no entanto, são aves relativamente dóceis, quase inofensivas (inócuas, eu diria). Não aceitam provocações. Aliás, não aceitam porque têm sérias dificuldades de interpretação de texto. Ficam perdidos na tradução. Costumam produzir piracemas de falácias em peças condenatórias e tuítes cifrados sem o menor sentido – inclusive, chegam a recolher tuítes, por vergonha e misericórdia.  

 

Um dos traços mais perturbadores dos marrecos migratórios é, ainda, a oscilação de seu canto. Um marreco migratório em idade adulta e em fase de acasalamento chega a produzir mais de 200 tons em uma única sentença proferida, dando margem a muitas interpretações e provocando verdadeiras revoadas de sentido e coerência.  

 

Costuma-se dizer que marrecos não cantam nem grasnam: esganiçam. 

 

No cio, chegam a produzir sons inaudíveis, verdadeiras odes ao ‘resguardo selvagem’ e à repulsa sexual. Costumam ser identificados na literatura técnica do ‘marrequismo aplicado’ como detentores de um surpreendente ‘repelente natural’ que os imuniza contra o assédio sexual da espécie.

 

Em outras palavras: são cafonas e bregas.  

 

A migração dos marrecos, para concluir, é um espetáculo real da natureza selvagem que se alastrou impávido pelo mundo político animal brasileiro. Muitos animais da elite sul-americana chegaram a depositar esperanças que um espécime desses marrecos migratórios pudesse chegar ao posto de rei dos animais.  

 

Doce ilusão. A natureza covarde da sub-espécie é inexorável, ainda mais quando o cerco histórico-climático começa a se fechar.  

 

Para os que ficam, resta a contemplação bucólica – e melancólica – da revoada claudicante dessas aves traiçoeiras. Como seus primos blindados, os tucanos, elas predam territórios e populações inteiras e depois saem à francesa, como se nada tivesse acontecido.  

 

Pode parecer apenas o destino deletério de seres repulsivos e asquerosos. Mas trata-se, mesmo, do curso natural do mundo selvagem – que reserva a fuga como única opção para espécimes pestilentos, inúteis e pulverizados pela lama tóxica da história.  


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