A quem interessa aumentar a desigualdade?
Por Thomas Piketty e Outros
O Brasil discute uma reforma
da previdência que tende a aumentar desigualdades, embora sua propaganda aluda
ao combate de privilégios. O país também se prepara para debater uma reforma
tributária de modo independente da previdência. Se a redução das desigualdades
fosse finalidade das reformas, as mudanças na previdência deveriam ser outras. E ambas as reformas deveriam ser
debatidas conjuntamente.
A reforma
da previdência proposta aumenta muito a desigualdade de acesso à aposentadoria. Muitos
brasileiros pobres começam a trabalhar muito cedo, mas não conseguem contribuir
pelos 20 anos exigidos para obter a aposentadoria parcial, para não falar dos
40 anos para a aposentadoria integral.
Nas regras
atuais, a primeira alternativa para aposentadoria é somar um tempo mínimo de
contribuição (30 anos para mulheres e 35 para homens) com sua idade para
alcançar um período de 86 anos para mulheres e 96 para homens, que aumentará a
cada dois anos até chegar à soma 90/100 em 2027. A segunda opção é alcançar a
idade mínima de 60 anos para mulheres e 65 para homens, com pelo menos 15 anos
de contribuição. A desvantagem é o desconto do valor da aposentadoria pelo
"fator previdenciário" que varia com a idade, o tempo de contribuição
e a expectativa de sobrevida.
A proposta
atual elimina a primeira opção. Aumenta a idade mínima feminina para 62 anos
(com os mesmos 15 anos de contribuição) e mantem 65 anos para homens, mas exige
20 anos de contribuição. Também reduz a aposentadoria integral
(obtida com 40 anos de contribuição) e aumenta o desconto da
aposentadoria parcial (entre 20 e 39 anos de contribuição).
O problema
é que os cidadãos que só conseguem se aposentar hoje por idade são
trabalhadores precários que estão longe de alcançar o tempo de contribuição e
idade exigidos nas novas regras: 56,6% dos homens e 74,82% das mulheres não alcançam.
Em média os homens só conseguem contribuir 5,1 vezes por ano, e as mulheres 4,7
vezes, segundo estudo de Denise Gentil (UFRJ) e Claudio Puty (UFPA) para a
Anfip.
Se
precisarem contribuir mais 60 meses, supondo que continuem empregados e
consigam contribuir no mesmo ritmo na velhice (o que é uma proposição absurda),
a idade mínima real de aposentadoria parcial seria 74,8 anos para mulheres e 76,8
para homens, na média. Na prática, milhões não chegariam a se aposentar ou, com
"sorte", seriam transferidos para a assistência social, mas suas
contribuições não seriam nem devolvidas.
Como são
trabalhadores em empregos precários, aumentar seu tempo de contribuição não significa
combater privilégios, mas aumentar a desigualdade. Significa retirar
recursos de muitos trabalhadores pobres e vulneráveis que não conseguirão se
aposentar.
De nada
adianta reduzir a alíquota mensal de contribuição para os pobres se a
contribuição se alonga por mais 60 meses e, no fim, nem garante a
aposentadoria. O incentivo é para que não contribuam, o que coloca em risco até
o pagamento das atuais aposentadorias.
O risco ao
sistema advém igualmente do fim da contribuição fiscal dos
empregadores, como a Cofins e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
(CSLL). Com o PIS-Pasep, somam cerca de metade das receitas da Seguridade
Social.
A proposta
atual retira as contribuições fiscais do financiamento das aposentadorias
(mantendo-as na Seguridade). O financiamento tripartite da aposentadoria acabaria, no
sentido em que a reforma deixaria apenas o contrato de trabalho formalizado
entre o trabalhador e seu empregador como fonte de recursos (através da
contribuição previdenciária sobre a folha salarial).
Isto tudo
provavelmente já inviabilizaria o sistema, mas para completar o governo
Bolsonaro promete reforma tributária que libera o empregador de contribuir
para a Previdência com uma percentagem da folha salarial, além de abolir a Cofins e
a CSLL.
Se o objetivo for mesmo combater privilégios e reduzir
desigualdades, a proposta deveria, explicar em detalhe as projeções atuariais e
demográficas que justificam atrasar e até inviabilizar a aposentadoria de
milhões de brasileiros pobres
Em um país
tão desigual, deixar apenas os trabalhadores e, a depender da reforma
tributária, talvez os empresários como responsáveis por um sistema contributivo
de aposentadoria é condená-lo, especialmente nas circunstâncias atuais. A crise e o
desemprego levaram 6,2 milhões de trabalhadores e milhares de empresas a
deixaram de contribuir para o sistema, contraindo as
receitas em cerca de R$ 230 bilhões entre 2014 e 2017 em termos reais.
Para
completar, o desvio das contribuições sociais da Seguridade Social para o
Tesouro aumentou de 20% para 30% em 2016, saltando da média de R$ 63,4 bilhões
entre 2013-2015 para nada menos que R$ 113 bilhões em 2017.
Foi a crise econômica
que contribuiu para o déficit, e não o contrário. Quando a crise for
superada, porém, não é provável que as receitas se recuperem o suficiente caso
o emprego do futuro venha sem contribuição empresarial sobre a folha salarial.
Se, como
hoje, a solução proposta para a insuficiência de receitas no futuro for elevar
de novo a idade mínima, a alíquota média e o tempo de contribuição, qual segurança jurídica
terão os trabalhadores para serem incentivados a contribuir para a previdência
pública mesmo que tenham empregos estáveis?
Em suma,
trabalhadores com emprego e renda precários não terão capacidade de alcançar o
tempo de contribuição requerido para se aposentar, enquanto trabalhadores com
emprego estável e maior renda não terão incentivos para
contribuir para um sistema insustentável.
É por isso
que, se o objetivo for realmente combater privilégios e reduzir desigualdades,
a proposta deveria, primeiro, explicar em detalhe as projeções atuariais e
demográficas que justificam atrasar e até inviabilizar a aposentadoria de
milhões de brasileiros pobres.
Segundo,
deveria focar no topo do funcionalismo público e não nos trabalhadores pobres e
precários. Nas projeções do governo para a proposta original, no entanto, a
suposta "justiça fiscal" com o aumento das alíquotas de contribuições
de funcionários públicos representa 1% da economia, enquanto 91% (R$ 4,1
trilhões em 20 anos) viria da assistência social e do regime geral, onde 90%
dos aposentados recebem até 2 salários mínimos.
Terceiro,
a reforma previdenciária deve ser necessariamente complementada pela reforma
tributária, mantendo o financiamento tripartite da Previdência, mas combatendo
os privilégios na tributação. Afinal, o Brasil parece um paraíso fiscal para
detentores de capital e para a elite de profissionais de alta renda.
Quase
metade da receita de impostos (49,19% em média entre 2008 e 2017) vem embutida
em bens e serviços que não distinguem o consumidor miserável do endinheirado.
Como o pobre consome tudo ou quase tudo o que ganha, paga proporcionalmente mais impostos
que o rico.
Por sua
vez, a alíquota máxima do imposto de renda (27,5%) captura tanto o assalariado
de R$ 5 mil quanto o de R$ 10 milhões. Já o detentor do capital simplesmente não paga
imposto pessoal sobre sua renda em lucros e dividendos. Profissionais que
prestam serviços como pessoas jurídicas têm o mesmo privilégio.
Outra jabuticaba
brasileira é que as empresas deduzem o "pagamento" de juros sobre seu
"capital próprio", o que aumenta os lucros distribuídos sem impostos.
Combater
estes privilégios pode levantar bem mais de R$ 100 bilhões ao ano como quer o
governo. Ademais, a sonegação se aproximou de R$ 620 bilhões em 2018, segundo
nova estimativa do Sinprofaz. Isto é muito mais que a economia com o corte de
aposentadorias e pensões proposto pelo governo Bolsonaro. Isto sem falar de
outras isenções e das dívidas tributárias.
Ainda é
tempo de debater com honestidade como combater privilégios e reduzir
desigualdades. Porém, levar adiante a reforma da previdência nos termos atuais
tornaria o Brasil um exemplo mundial de como destruir um sistema solidário de
previdência e aumentar a desigualdade.
Thomas Piketty é
diretor da l´Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) e professor
da Paris School of Economics (PSE).
Marc Morgan e Amory
Gethin são pesquisadores do World Inequality Lab da PSE.
Pedro Paulo Zahluth
Bastos é professor do IE-Unicamp e pesquisador do Cecon-Unicamp.
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