A vacina russa e a competição geopolítica
Por
Jeferson Miola
O registro, pela Rússia, da 1ª vacina contra o coronavírus, é um passo extraordinário na corrida científica mundial para proteger a humanidade desta terrível peste. Se confirmar a eficácia, a eficiência e a segurança da vacina, estaremos diante de um marcante acontecimento da história contemporânea.
Mais que um extraordinário êxito médico-científico, este
pioneirismo coloca a nação russa, em geral, e Vladimir Putin, em particular, na
dianteira do jogo geopolítico que, tudo indica, deverá se desenrolar globalmente
em novas bases políticas, econômicas e sociais depois da pandemia.
Não por acaso os russos batizaram a vacina de “Sputnik
V”, em alusão ao grande salto à frente da antiga União Soviética em
relação aos EUA com o lançamento pioneiro do satélite artificial Sputnik ao
espaço, em 1957; o primeiro da história. Aquele evento memorável marcou
fortemente a competição e o equilíbrio entre as 2 potências durante a guerra
fria.
A descoberta da 1ª vacina, assim como o lançamento do 1º
satélite, são dois “momentos Sputnik” da Rússia; momentos que
simbolizam poder, conhecimento, soberania e liderança.
Por ignorância, má-fé ou talvez por preconceito ocidental em
relação aos russos [e aos eslavos em geral], o mundo desconhece “que
a Rússia tem sido um dos líderes globais em pesquisas de vacinas por
séculos”, como afirmou em artigo publicado em vários idiomas Kirill Dmitriev,
o presidente do Fundo Russo de Investimentos Diretos, que
financiou a pesquisa do Sputnik.
Kirill lembra que “a imperatriz russa Catarina, a
Grande, deu um exemplo em 1768, quando ela recebeu a primeira vacinação contra
a varíola do país, 30 anos antes do mesmo ter sido feito nos EUA”.
De acordo com Kirill, no ano de 1892, ainda na era czarista, “o
cientista russo Dmitry Ivanovsky observou um efeito incomum enquanto estudava
folhas de tabaco infectadas pela doença do mosaico. […] isso
foi feito meio século antes que o primeiro vírus pudesse ser visto por um
microscópio, tornando a pesquisa de Ivanovsky o nascimento de uma nova ciência
chamada virologia”.
Desde aquela descoberta, diz Kirill, “a Rússia tem sido um dos líderes
globais em virologia e pesquisa de vacinas, formando inúmeros cientistas
talentosos tais como o pesquisador Nikolai Gamaleya, que estudou no laboratório
do biólogo francês Louis Pasteur em Paris e abriu a segunda estação de
vacinação do mundo para a raiva na Rússia em 1886”.
Depois da revolução russa de 1917, “a União Soviética continuou o apoio
às pesquisas de vírus e vacinas. Todos os nascidos depois da 2ª Guerra Mundial
receberam vacinas obrigatórias contra a pólio, tuberculose e difteria. Em um
raro exemplo de cooperação durante a Guerra Fria, três importantes virologistas
soviéticos foram aos EUA em 1955 oferecer oportunidades de testes na União
Soviética para uma vacina americana contra a pólio, uma doença mortal que tirou
a vida de milhões de pessoas”.
Kirill entende que “décadas de esforços de cientistas
russos e soviéticos levaram à criação de uma excelente infraestrutura de
pesquisas, como o Centro Nacional de Pesquisa de Epidemiologia e Microbiologia
Gamaleya”, que desenvolveu a Sputnik, e resultaram
numa infra-estrutura que faz da Rússia “uma das ‘bibliotecas virais’ mais
ricas do mundo”.
Com Putin, independentemente da percepção que se tenha acerca da
política interna do país, a Rússia se tornou um importante fator de dissuasão e
equilíbrio ante o belicismo estadunidense. Sem a assertividade geopolítica
russa, as realidades da Síria, Irã, Venezuela etc, seriam trágicas.
A Rússia compensa a perda competitiva com a China e os EUA em
matéria econômica com uma estrutura bélica praticamente imbatível – tanto
defensivamente como ofensivamente. Com a recomposição, modernização e
sofisticação do poderio bélico com orçamento militar 10 vezes menor que o dos
EUA – US$ 60 bi/ano contra US$ 700 bi/ano dos EUA – a Rússia assumiu presença
decisiva no tabuleiro mundial.
A vacina Sputnik, nesta
perspectiva, catapulta a imagem do país e projeta a influência russa na
competição geopolítica mundial.
À desconfiança e à descrença reinantes em determinados circuitos
governamentais e científicos, pode-se argumentar que Putin não daria um passo
em falso numa questão que pode fazer evaporar a credibilidade, a influência e o
poder da Rússia no mundo. Mas a resposta a essa interrogação só virá com o
tempo.
Nas crises e catástrofes, a história acelera. O Sputnik significa
um momento de aceleração da história do mundo e da humanidade. O único que não
se pode duvidar é da consciência que o governo Putin tem a esse respeito; por
isso faz esta aposta tão arrojada.
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