No
engarrafamento da Avenida Paulista, um motoqueiro nos devolveu a grandeza humana
Avenida Paulista: num fim de
tarde de inverno, a mágica se fez e já não éramos um bando de paulistanos
impacientes e ranzinzas; o mau humor tinha-se transformado em solidariedade,
esperança, grandeza de alma (Foto:
Getty Images)
Eram cinco e meia da tarde e estávamos na esquina da Avenida Paulista
com a Rua Pamplona. Dia civil, tipo quarta-feira, em meados de agosto. Quem
mora em São Paulo sabe exatamente o que quero dizer. Quem não mora, nem queira
saber.
Os motoristas já se tinham exasperado até o limite. Já tinham buzinado,
gritado, amaldiçoado, blasfemado. Agora, após o sinal abrir e fechar por seis
vezes consecutivas sem que nada se tivesse movido, estavam quase conformados,
cada um tentando usar da própria criatividade para tolerar o martírio da espera,
que, certamente, ainda seria longa.
Eu, no volante do meu velho carro, fazia crochê. A colcha ia adiantada,
aquela parada rendera vários quadradinhos, dos duzentos e tantos que me propus
a fazer para a grande colcha de casal que vai enfeitar minha cama.
Bem ao meu lado, um Fiat não se conformara ainda. Seu motorista insistia
no uso da buzina, como se acreditasse que ela fosse um desintegrador que faria
sumir tudo o que impedia sua passagem. Aquele som estridente, agudo,
infernal, ia enlouquecer a todos nós, eu tinha certeza.
Eis que se aproxima do nervoso Fiat um rapaz pilotando uma moto.
"Felizardo, esse não precisa se submeter ao mesmo martírio que nós, basta
costurar entre os carros, seu caminho pronto e aberto", pensei eu. Mas o
motoqueiro, em vez de seguir adiante, emparelhou com o carrinho barulhento e
antipático. E eu me preparei para testemunhar uma briga, torcendo para
que nenhum dos dois estivesse armado.
Instintivamente, observei se o motoqueiro segurava nas mãos
algum objeto perigoso (aparentemente, não) e se eu tinha alguma possibilidade
de escapar da cena da confusão. Como não tinha, preparei-me para
assistir, a poucos metros de mim, a mais um capítulo da infindável novela O Homem É Lobo do Homem.
Mas não era isso o que estava em cartaz. Foi impossível não
ouvir o diálogo. Em um tom de voz surpreendentemente baixo e paciente, o rapaz
da moto disse:
— Qual é a da buzina,
companheiro? Não vê que nada consegue se mexer, e essa barulheira está
deixando todo mundo mais nervoso?
O motorista do Fiat respondeu, aflito:
— É o meu filhinho, o meu bebê
está passando mal! Preciso chegar rápido ao Pronto Socorro Infantil!
Estou desesperado, assim não vou chegar lá nunca! Meu bebê está morrendo, moço!
A essas alturas, todos em volta estavam atentos. Eu já tinha largado o
crochê e descido do carro, da mesma forma que os motoristas mais próximos, que
perceberam o que acontecia.
Vimos, então, que no Fiat estavam também uma mulher e um bebê. Ela, aos
prantos, o bebê, aparentemente sem sentidos.
O motoqueiro não teve um segundo de hesitação:
— Venha, moça. Pegue seu filho e suba na garupa da minha moto. Eu levo vocês até o hospital. Para o meu cavalo, não existe engarrafamento!
— Venha, moça. Pegue seu filho e suba na garupa da minha moto. Eu levo vocês até o hospital. Para o meu cavalo, não existe engarrafamento!
O que aconteceu então foi uma dessas cenas que até os filmes
mais românticos ou as novelas mais piegas têm pudor de apresentar.
Mas era real, de modo que não tivemos vergonha nenhuma de chorar, todos,
enquanto o casal se despedia com um beijo apressado, e o rapaz ajeitava mãe e
filho na garupa, para, imediatamente, sair em disparada pela calçada da
Paulista. E todos nós batíamos palmas, como crianças.
A
mágica tinha acontecido: já não éramos um bando de paulistanos impacientes e
ranzinzas; o mau humor tinha-se transformado em solidariedade, esperança,
grandeza de alma.
Quando a moto sumiu, o motorista do Fiat, com ar de quem ainda não
entendera direito o que tinha acontecido, nos encarou, aos que aplaudíamos, um
por um, olho no olho.
E todos nós éramos gente. Humanos, solidários, irmãos.
A mágica tinha acontecido: já não éramos um bando de
paulistanos impacientes e ranzinzas; o mau humor tinha se transformado em
solidariedade, esperança, grandeza de alma.
Não sei se o bebê se salvou. Nem sei o que ele tinha, talvez nem
estivesse correndo risco de vida. Quanto daquela aflição seria real? Quanto era
ansiedade de pais destreinados?
O que eu sei é que nós fomos salvos. Aquele pai nos dirigiu um olhar de
gratidão, como se o gesto do motoqueiro tivesse emanado de todos nós.
Como se
cada um de nós tivesse contribuído para o milagre.
Naquele momento de luz, no fim da tarde, na Avenida Paulista,
um motoqueiro nos devolveu a grandeza humana. Deixou em cada um de nós a
marca de seu gesto, pois nos fizera coadjuvantes de uma cena de amor, da qual
ele era o protagonista, mas que é parte de uma trama que nos transpassa a
todos: a grande comédia humana, um enredo que, felizmente, ainda pode nos
surpreender.
Assim, de repente, numa esquina de São Paulo.
Num fim de tarde, no inverno.
por LIDIA ARATANGY
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