O copo do governo Lula está meio cheio ou meio vazio? Cheio! De mundo real !
por Reinaldo Azevedo
Charge:
Zdenek Sasek/iStock
Esse negócio de copo meio cheio e meio
vazio para avaliar o sucesso ou insucesso de uma empreitada é só uma metáfora
do pensamento nem-nem. Se a expectativa dos adversários do dono do copo era a
de que estaria vazio no ponto da trajetória em que se faz a análise, então o
criticado pode comemorar o feito; se a promessa era a de que estaria pela boca,
aí há frustração de expectativas. Lula acumula vitórias inequívocas na
conclusão do primeiro ano de mandato. Dado que alguns celerados chegaram a
antever a ingovernabilidade e até o impeachment, ele pode se regozijar.
E olhem que escrevo isso no dia em que
o Congresso derrubou dois vetos seus:
1: à desoneração da folha de salários,
que inclui a redução de recolhimento de INSS para municípios de até 142,6 mil
habitantes;
2: ao estabelecimento de um marco
(1988, ano da homologação da Constituição) para a demarcação de terras
indígenas
UM POUCO SOBRE OS VETOS
O governo tinha plena consciência das
duas derrotas. E, em ambos os casos, haverá judicialização. Só para constar: a
desoneração da folha implica uma perda de arrecadação de R$ 9,5 bilhões; o
jabuti dos municípios, outra de mais uns R$ 9 bilhões. Placar na Câmara pela
derrubada: 378 a 78; no Senado, 60 a 13. Traduzindo: houve progressistas em
favor da manutenção da desoneração.
No caso do marco temporal, as favas
contra os indígenas também eram contadas. Na Câmara, as esquerdas haviam se
unido para manter o veto, mas perderam: 137 a 321. Hoje, no Senado, 53 a 19. O
texto mantido pelo Congresso é um descalabro: além de inventar o marco, permite
a intromissão em reservas sem a autorização dos indígenas.
Em acordo prévio, só se mantiveram a
restrição à expansão de transgênicos nas áreas demarcadas (o agro também não
quer saber disso; não sem seu controle); a proibição de a União retomar terra
já demarcada e a imposição de limites para o contato com povos isolados. Carlos
Fávaro, ministro da Agricultura, que se licenciara para voltar ao Senado e
endossar o nome de Flávio Dino, votou contra o governo antes de retornar à
pasta.
Entendo que as desonerações, incluindo
o jabuti dos municípios, é inconstitucional. Aquilo que quer a maioria do
Congresso para as terras indígenas viola igualmente a Carta. Mesmo que se
queira votar uma PEC para o liberou-geral, a agressão à Lei Maior permaneceria
porque se estaria a cassar direitos fundamentais. Vêm embates por aí. Assim é
nas democracias.
MESMO ASSIM?
"E você diz, Reinaldo, que, ainda
assim, com a imprensa fazendo escarcéu e anunciando a derrota do Planalto, há
razões para comemorar?" A Bolsa bateu seu recorde histórico nesta quinta.
Os juros americanos interferiram, claro!, mas a realidade interna não
atrapalhou.
A despeito das dificuldades, a economia
cresce acima das expectativas; o desemprego mostrou tendência declinante; o
país conseguiu aprovar um arcabouço fiscal e caminha para concluir uma reforma
tributária. Se não der agora, será no começo do ano que vem. Nunca se esqueçam:
os apocalípticos antecipavam o... apocalipse (claro!) desde a PEC da transição,
ainda no fim do ano passado. Lula nem havia assumido.
As propostas de Fernando Haddad para a
recuperação de receitas — diminuindo o estoque de sem-vergonhices tributárias e
mamatas para nababos — avançaram e avançam, ainda que, no percurso, os senhores
parlamentares, atendendo a lobbies (como o da desoneração), acabem por reduzir
a arrecadação potencial de determinadas medidas.
Eu não odeio a política nem os
políticos, vezo que percebo em análises de gente que, então, deveria mudar de
profissão. Também não sou o tipo de "idealista" que se descola da
realidade e se entrega a digressões sobre o mundo e o país que deveríamos ter.
Até posso fazê-lo quando bato papo com meus amigos. A melhor saída, para mim, é
sempre aquela que coincide com o sentido da minha vontade, dentro do possível.
MUNDO REAL
Em outubro do ano passado, os
brasileiros elegeram o Congresso mais reacionário da história. É um dado do
mundo real. E quis o andamento dos últimos 10 anos da vida pública que se
conferisse ao Poder Legislativo um poder inédito. Vivemos um
semiparlamentarismo informal. O presidente ter recuperado os programas sociais
destroçados por Jair Bolsonaro; reordenado as contas públicas num limite que
não destrua benefícios -- ainda que persista o déficit -- e adotado medidas que
concorram para o crescimento, SEMPRE NEGOCIADO COM O PARLAMENTO QUE HÁ, NÃO COM
AQUELE QUE EU GOSTARIA QUE HOUVESSE, bem, eu considero, sim, um feito e tanto.
"Ah, mas veja lá o PT a defender
mais déficit para produzir um pouco mais de crescimento..." O partido
defenda o que quiser. A escolha, no que lhe cabe escolher no
semiparlamentarismo "de facto", é de Lula, que lidera uma frente que
vai do PSOL ao PP.
Dados o seu viés e o seu público, um
dos papeis do PT é pedir mais inflexão social à gestão. No dia em que Armínio
Fraga aplaudir a legenda, um ou outro não estará cumprindo o seu papel. Não se
trata aqui de um juízo depreciativo nem sobre um nem sobre outro. Até porque
não creio que um e outro sejam dotados da razão universal. Todos têm o caminho
da salvação. Receitas infalíveis são sempre tirânicas e não têm de negociar com
o Congresso.
Estamos longe do paraíso — e, para ser franco, nem pretendo fazer tal viagem tão cedo. Quando lembro o buraco em que estávamos e vejo, antes que se feche um ano de governo, o ponto da trajetória em que estamos, constato o copo cheio do mundo real e possível. Está, sim, muito longe do meu gosto. Mas eu não preciso negociar com um Congresso que derruba, por ampla maioria, dois vetos civilizatórios. E, no entanto, o país se move.
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