quinta-feira, 15 de abril de 2021

Artigo de profunda REFLEXÃO sobre a pandemia que TANTO nos atormenta ! ! !



Boff lembra que em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar, realçando que de kri vem também crítica, processo pelo qual nos damos conta do alcance e dos limites de qualquer fenômeno.  

A respeito do modo de se vivenciar as crises, revisitei um pequeno grande livro: “Essa escola chamada Vida: depoimentos de Paulo Freire e Frei Betto ao repórter Ricardo Kotscho, em certa altura da rica prosa entre ambos, Betto afirma que “(...) Não existe crise pessoal. Existem maneiras pessoais de sentir as crises coletivas”.  

Isto significa, entre outras coisas, que o clichê de que na pandemia “estamos todos no mesmo barco”, não é verdadeiro nem no modo de cada pessoa sentir os efeitos da pandemia, o que dirá em relação as condições materiais para o seu enfrentamento.  

Nesse sentido, essa reflexão brota do meu modo pessoal de sentir a atual crise coletiva sanitária e civilizatória. Trata-se de uma reflexão de um militante de direitos humanos, branco, heterossexual, cristão, de classe média e atualmente trabalhando no serviço público.  

A despeito dos privilégios inerentes a essas condições, que não são poucos, em um país racista, misógino, homofóbico, com crescente intolerância religiosa, elevadas taxa de desemprego e com fobia aos mais pobres, a minha experiência de viver tempos tão sombrios tem sido permeada por um permanente estado de apreensão, angústia e tristeza.  

Custa-me acreditar que a fé cristã que comungo, em uma espécie de retorno à idade medieval, seja instrumentalizada para justificar, legitimar e/ou apoiar o regime da necropolítica instalado no país, que diariamente decide quem deve morrer.  

Estupefato venho observando as blasfêmias, na acepção bíblica do termo, espalhadas aos borbotões nas redes sociais, apresentando uma imagem de Deus caricata, distante dos ensinamentos do Cristo nos evangelhos. São frases do tipo: “Deus está no controle”; “Deus é quem manda”; “Deus acima de tudo”, com querem nos fazer acreditar, e, efetivamente muitos crêem, que as mais de 300 mil mortes por Covid-19 no Brasil, os mais de 19 milhões na fome, são obra da vontade implacável de Deus.  

Outro traço marcante patológico do flagelo desses tempos são os processos de alienação, alheamento e anomia ante a gravidade da crise em que vivemos. Ítalo Calvino, um dos mais notáveis escritores do século XX, com o talento peculiar inerente aos grandes literatos de fazer amor com as palavras, em uma obra inacabada, Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas escreveu, quem sabe antevendo o que estaria porvir no século XXI, que:  

“(...) Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade  

(...) Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa”.  

Com perplexidade, noto esse massivo processo de petrificação, da perda da capacidade cognitiva e de sentido imediato da urgência em relação à barbárie que avança a passos largos sobre nós. Tal estado muitas vezes só é rompido, ainda que momentaneamente, quando a força cruel e letal do vírus, irrompendo as redomas, ceifa a vida de algum dos entes queridos, fazendo-nos lembrar, na inominável dor da perda, a condição de mortal.  

Nestes tempos pestilentos, resta-me o socorro das boas leituras, na companhia de uma boa música e o refúgio na esperança de fé nas coisas, que ainda não são, e que por enquanto também não se vêem, mas, que em um breve futuro, poderão ser pela ação coletiva de homens e mulheres que acreditam e constrói diuturnamente, contra toda a desesperança, outro mundo.


Pedro Luis Rocha Montenegro - militante de direitos humanos, foi secretário de Direitos Humanos de Maceió, ouvidor nacional de Direitos Humanos e atualmente é secretário da Coordenadoria de direitos humanos do Tribunal de Justiça do estado de Alagoas 

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