Um texto fundamental para quem acha que o campo democrático “não está fazendo nada” e que estamos muito ameaçados. Hoje estamos vencendo depois da surra de 2018 quando não sabíamos como reagir. Hoje eles estão na parede. As condições mudaram radicalmente. É claro que eles continuarão a tentar intimidar (e com alguma frequência conseguem), mas o jogo virou.
POR
Quando tomou o voo de Portugal para o
Brasil, o casal Fernanda Sarkis e Marcus Nogueira trazia uma bagagem preciosa.
Brasileiros, ela mestre em comunicação política pela Universidade do Porto e
ele sociólogo, Sarkis e Nogueira haviam feito um mapeamento da extrema direita
portuguesa no universo digital que ajudou o Partido Socialista a conquistar uma
inesperada maioria nas eleições legislativas do início do ano. Enquanto
cruzavam o Atlântico, no mês de fevereiro, a campanha no Brasil estava longe de
começar, mas o PT já andava às tontas com um desafio enorme: como enfrentar a
milícia digital de Jair Bolsonaro, que se provou tão eficaz na eleição de 2018?
Baseados na experiência em Portugal, Sarkis e Nogueira achavam que tinham a
resposta.
Em Brasília, o casal começou a
participar de discussões sobre o funcionamento da extrema direita. Trocaram
ideias com líderes de alguns partidos, mas estavam mais interessados no PT por
achar que a candidatura de Lula era a única capaz de enfrentar Bolsonaro com
sucesso. De início, o núcleo político petista ficou na dúvida sobre como a
abordagem do casal poderia ser útil na comunicação do partido e na ação
política. Mas as conversas prosseguiram até que houve uma reunião com o
advogado Angelo Ferraro, ex-assessor jurídico do governo de Dilma Rousseff e
sócio de Eugênio Aragão, que ocupou o cargo de ministro da Justiça nas vésperas
do impeachment da petista. Ferraro e Aragão operaram a área jurídica da
campanha presidencial de Fernando Haddad em 2018 e estavam escalados para
exercer a mesma função na campanha de Lula. Associados ao escritório de
Cristiano Zanin, o advogado que tomou conta dos processos de Lula na Lava Jato,
eles queriam abrir uma trincheira jurídica contra a milícia digital
bolsonarista.
No encontro, realizado no escritório
de Ferraro e Aragão, os advogados logo captaram o potencial do trabalho de
Sarkis e Nogueira. Perceberam que a pesquisa digital poderia ser um elemento
central nas ações jurídicas, capaz de deter o avanço do bolsonarismo nas redes
sociais. Sarkis e Nogueira explicaram que adotam o conceito de “cartografia da
controvérsia”, cuja base está na Teoria Ator-Rede, do pensador francês Bruno
Latour, recentemente falecido. Na pesquisa em Portugal, o casal incorporou a
ideia de que, para compreender bem um ator, é preciso analisar seu comportamento
em rede. A partir dessa premissa, construíram extensos mapas de interação de
atores da extrema direita portuguesa, decodificando como, por meio das redes,
eles amplificavam seu discurso e suas mensagens.
Em termos mais técnicos, investigaram
como uma rede transnacional, sob uma coordenação central, opera na ocupação do
espaço digital, de modo a fazer muito mais do que disseminar fake news:
construir toda uma realidade paralela. Nesse mundo à parte, as premissas são
falsas e a desinformação se multiplica em diversas camadas. Não se trata,
apenas, de inventar uma mentira e martelá-
la diante de uma plateia
politicamente disponível. São desinformações, baseadas em interpretações
subjetivas, manipuladas de modo que pareçam objetivas.
Apesar do linguajar algo obscuro, os
advogados entenderam a importância da proposta para a atuação jurídica e
contrataram o casal por conta própria. Assim começou um trabalho que, fundindo
pesquisa digital com argumento jurídico, pela primeira vez conseguiu
neutralizar parcialmente a milícia digital bolsonarista.
Corria o feriado de 1º de maio quando
os pesquisadores começaram a mapear e monitorar a rede de interação de um único
ator numa única plataforma: o Twitter do vereador Carlos Bolsonaro
(Republicanos-RJ). Nessa primeira etapa, o trabalho durou até 21 de maio. (Na
segunda etapa, estendeu-se de 15 de agosto a 30 de setembro.) Os pesquisadores
constataram que Carlos Bolsonaro comentava posts de outros atores, mas a grande
maioria de suas intervenções – 78% – era sempre sobre postagens de um universo
de quarenta perfis.
Esses quarenta perfis foram
classificados em três categorias. A primeira era o “promotor de conteúdo”,
assim chamados os perfis que enquadravam notícias e manchetes – atuais e
antigas – numa linha narrativa pró-Bolsonaro. O segundo era o “produtor de
conteúdo”, que criava novas histórias para pautar o debate no âmbito daquilo
que os pesquisadores chamam de “ecossistema de desinformação”. O terceiro tipo,
talvez o mais importante, era o spin doctor. São perfis com alta credibilidade
no tal ecossistema, capazes de agendar o debate com grande velocidade e, como
têm milhões de seguidores, enquadram um acontecimento à feição bolsonarista com
facilidade.
Ao mapear a rede de Carlos Bolsonaro,
que hoje tem 3,2 milhões de seguidores no Twitter, os pesquisadores começaram a
descrever a estrutura e a forma de atuação da milícia da desinformação do
presidente. Os dados coletados eram remetidos à área jurídica da campanha do
PT, que acionava o Tribunal Superior Eleitoral (tse), pedindo a remoção das
postagens de fake news. Em toda a campanha, a equipe petista conseguiu 75
decisões judiciais para remover postagens, sempre por desinformação.
Aos poucos, os pesquisadores foram
documentando o caráter reiterado na publicação de desinformação dos atores que
se relacionavam com Carlos Bolsonaro no Twitter. Em outras palavras, a pesquisa
estava, paulatinamente, demonstrando a existência e o funcionamento do
“ecossistema de desinformação”, que, ao todo, reunia 81 perfis nas redes
sociais. Entre eles, estavam os três filhos de Bolsonaro e um punhado de
parlamentares, como Carla Zambelli (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF) e Ricardo
Salles (PL-SP), o ex-ministro que vai estrear uma cadeira na Câmara dos
Deputados, além de apoiadores do presidente. O levantamento do PT mostrou que a
milícia não atuou de forma espontânea – ou “orgânica”, como se diz no jargão
digital – mas sim de maneira coordenada com o objetivo de produzir e espalhar
desinformação para influenciar o resultado da eleição de 2022.
“As múltiplas decisões judiciais que
mandam remover desinformação atestam que há um comportamento reiterado e
padronizado entre os atores do ‘ecossistema’”, afirmou Fernanda Sarkis à piauí.
“Isso mostra como eles ocupam o espaço público, em especial no debate político
eleitoral, com uma estratégia coordenada, com o objetivo de validar como
verdade um conjunto de mentiras”.
O estudo do PT mostra que o
“ecossistema da desinformação” de Bolsonaro operava em quatro eixos temáticos:
“violência e criminalidade”, “religião e costumes”, “descredibilização do
sistema eleitoral” e, por fim, “agenda socioeconômica”. Nenhum deles estava
voltado à formulação de propostas, mas em organizar acusações – frequentemente
mentirosas – contra os adversários, sobretudo Lula. Cada perfil podia tratar de
qualquer eixo temático a qualquer tempo, impulsionando nas redes a fake news do
dia que, em alguns casos, podia durar semanas ou mais.
A lorota de que Lula perseguiria
cristãos, imitando o que se passa na Nicarágua do seu aliado político Daniel
Ortega, foi um desses casos duradouros. Entre julho e setembro, 42 perfis da
rede de interação de Carlos Bolsonaro publicaram 238 conteúdos sobre o assunto.
Foi num crescendo: 5 em julho, 76 em agosto e 162 em setembro. O deputado
Eduardo Bolsonaro (PL-SP) entrou na roda em 12 de julho. De início, com
insinuações indiretas. Em 19 de agosto, subiu o tom. “Lula e o PT apoiam
invasões de igrejas e perseguição de cristãos.” Como o assunto crescia, Jair
Bolsonaro apareceu na entrevista que deu ao Jornal Nacional em 22 de agosto com
uma palavra escrita a caneta na palma da mão: “Nicarágua.” Era uma senha para
impulsionar o assunto.
Um dos melhores exemplos da atuação
da milícia digital bolsonarista partiu do eixo “violência e criminalidade”, que
tentou vincular Lula ao PCC, a maior organização criminosa em atividade no
Brasil, e ao assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel,
ocorrido em 2002. Na rede de interação de Carlos Bolsonaro no Twitter, 47
perfis publicaram 763 tuítes sobre os dois assuntos, entre 3 de maio e 10 de
outubro, com destaque para três perfis: @ViLiMiGu_Tex e @ruirapina3, cujos
autores não se identificam, e @kimpaim, que pertence a Kim Paim, influente
youtuber que apresenta programas com dossiês sobre temas de interesse da agenda
bolsonarista, quase sempre repletos de desinformação. Figura central na rede de
Carlos Bolsonaro, Paim publicou uma sequência de quatro vídeos, de uma hora
cada um, entre os dias 2 e 5 de julho, estabelecendo a tal ligação Lula- PCC.
Uma de suas fontes era o perfil @ViLiMiGu_Tex. Carlos Bolsonaro recomendou
tanto o vídeo de Paim quanto os tuítes de ViLiMiGu: “Vale a pena conferir a
thread!”
A sequência é didática sobre o
funcionamento do “ecossistema da desinformação”: perfis anônimos lançam a fake
news, que é amplificada por influenciadores e endossada pela família Bolsonaro.
Mas foi justamente as lorotas sobre Lula-PCC e a morte de Celso Daniel que
marcaram o início dos problemas para a milícia bolsonarista. Com as mentiras
bombando nas redes – só em julho, a milícia bolsonarista postou 434 tuítes
sobre o assunto –, o PT entrou com a representação eleitoral 0600543-76.2022.
Foi o começo de uma mudança importante.
Na representação, o partido pediu a
remoção de publicações mentirosas sobre quatro temas: a suposta ligação de Lula
com o PCC e a morte de Celso Daniel, a associação do petista ao fascismo e ao
nazismo e, por último, uma declaração manipulada de Lula, de modo a parecer que
ele dissera que usava “pobre como se fosse papel higiênico”. Na noite de
domingo, 17 de julho, durante o plantão de recesso do Judiciário, o ministro
Alexandre de Moraes acatou o pedido e mandou remover as publicações de seis
redes – Twitter, TikTok, YouTube, Instagram, Facebook e Kwai. A decisão atingiu
posts do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e dos deputados bolsonaristas Otoni
de Paula (MDB-RJ), Hélio Lopes (PL-RJ) e Carla Zambelli, bem como de outros
apoiadores e até administradores de sites e canais no YouTube.
Em sua decisão, o ministro Alexandre
de Moraes aceitou um critério proposto pelo jurídico do PT: derrubar conteúdos
que já tivessem sido apontados como falsos ou enganosos pelas agências de
checagem. As publicações atingidas pela decisão daquele 17 de julho ou eram
mentiras evidentes já descartadas pela própria Justiça, ou já haviam sido
desmentidas pelas agências. Em sua decisão, Moraes, então vice-presidente do
TSE, recorreu a uma retórica inflamada, crivada de pontos de exclamação:
Liberdade de expressão não é
Liberdade de agressão!
Liberdade de expressão não é
Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra
alheias!
Liberdade de expressão não é
Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e
preconceituosos!
Aparentemente, o ministro Moraes
enamorou-se do seu pronunciamento e voltou a usá-lo, tal e qual, em outras
decisões no período eleitoral. Em outubro, por exemplo, mandou excluir
publicações segundo as quais Lula iria instituir o uso de banheiro unissex para
as crianças nas escolas – uma das mentiras que mais impressionaram um segmento
dos eleitores evangélicos. Um dos tuítes com a fake news era do presidente
Bolsonaro. E, na ordem para suspender o conteúdo falso, lá foi Moraes com seus
pontos de exclamação:
Liberdade de expressão não é
Liberdade de agressão!
Liberdade de expressão não é
Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra
alheias!
Liberdade de expressão não é
Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e
preconceituosos!
Consolidada a tendência de seguir as
agências de checagem para definir conteúdos falsos, a coligação liderada pelo
PT passou a concentrar seus pedidos em temas já analisados pelos checadores
profissionais. A decisão de Moraes teve um impacto imediato. O volume geral de
postagens no Twitter caiu cerca de 30%, segundo levantamento da Pública, uma
agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos. Até no Telegram, rede
que não fora atingida pela remoção de conteúdos porque não constava da
representação, a quantidade de mensagens relacionando PT e PCC desabou 56,8%.
Para quem desconhece o funcionamento
da milícia digital bolsonarista, uma decisão da Justiça Eleitoral carimbando um
conteúdo como falso pode parecer apenas isso: um conteúdo falso suspenso do
perfil de determinado usuário. Na prática, é muito mais. A Justiça derruba um
capítulo (ou um conjunto de capítulos) que compõe a grande narrativa da rede de
desinformação, desarticulando parcialmente o discurso digital. No mundo analógico,
é como se uma publicação, que normalmente é distribuída de graça nos pontos de
ônibus e estações de metrô, deixasse de ser entregue aos passageiros por seu
conteúdo mentiroso. Só que essa publicação – eis aí a diferença brutal – era
distribuída em milhares de pontos de ônibus e metrô para milhões de pessoas em
questão de segundos.
Essa é a rede que uma decisão
judicial derruba.
O PT criou uma estrutura para a
guerra digital. Em São Paulo, conforme contou a repórter Consuelo Dieguez em
reportagem no site da piauí, instalou-se uma sala com cinquenta monitores
cobrindo uma parede inteira – ali se acompanhava, minuto a minuto, o que a
milícia bolsonarista estava disseminando. Em agosto, por meio do advogado
Cristiano Zanin, a equipe paulista ganhou a adesão de Marcos Aurélio Carvalho,
estrategista em marketing digital que trabalhara na campanha digital de
Bolsonaro em 2018 – da qual foi defenestrado em razão do ciúme de Carlos
Bolsonaro. Carvalho conhecia o adversário por dentro.
Em Brasília, onde ficavam Sarkis e
Nogueira, monitorava-se o “ecossistema de desinformação” como um todo, que
passou a ser jocosamente chamado de “o show de Jair”, numa alusão ao filme O
Show de Truman, de 1998, em que o personagem principal vive – sem saber – numa
redoma em que, na aparência, tudo transcorre com espontânea naturalidade, mas,
na verdade, todas as interações são programadas. Quando publicações com fake
news começavam a ser impulsionadas na rede de Carlos Bolsonaro, os
pesquisadores alertavam: “Começou a rodar o show de Jair.”
A vantagem de analisar o
“ecossistema” como um todo era viabilizar um contra-ataque estratégico. Na
campanha, o PT recebia centenas, às vezes milhares, de mensagens de militantes
denunciando fake news. Era impossível trabalhar caso a caso. Com a abordagem
estratégica, que identificava cirurgicamente os pontos nevrálgicos, a equipe
digital ajudou a qualificar as ações dos advogados da campanha – “nossos obuses
judiciais”, nas palavras de Eugênio Aragão. Afinal, tal como no filme de 1998,
o show de Jair de 2022 também contava com uma equipe encarregada de produzir e
promover o espetáculo.
Kim Paim, o youtuber dos dossiês, é
um dos nomes de destaque. Paim é engenheiro, vive na Austrália e tem 700 mil
inscritos em seu canal no YouTube, no qual apresenta programas diários de uma
hora de duração. O presidente Bolsonaro já promoveu conteúdos de Paim. Seus
vídeos costumam reproduzir conteúdos de perfis do “ecossistema de
desinformação”, como “Família Direita Brasil” e “Demagogia do Oprimido”, além
de pessoas físicas como Carlos Bolsonaro e outros militantes bolsonaristas,
como Elisa Brom, Iara GB, Rafael Balboa e Luiz Paulo (LP).
Outro megafone no show de Jair é o
empresário Leandro Ruschel, membro do conselho da Brasil Paralelo, a mais ativa
plataforma de streaming da extrema direita. Ruschel é um dos principais spin
doctors. Sua especialidade é tentar vincular a esquerda ao crime, qualquer
crime – do narcotráfico ao terrorismo. “TODOS os movimentos ligados à esquerda
apresentam uma estreita ligação com o crime”, escreveu no dia 2 de julho em seu
Twitter, onde tem 900 mil seguidores. (A postagem foi excluída.) Na campanha,
Ruschel foi alvo de cinco decisões judiciais, todas suspendendo a veiculação de
conteúdo falso ou distorcido.
Uma terceira fonte de referência é
Bernardo Küster, que se apresenta como diretor de opinião do Brasil Sem Medo,
um blog bastante ativo da direita extremista. Küster tem também um canal no
YouTube, que beira 1 milhão de inscritos. O Brasil Sem Medo – ou BSM, para os
íntimos – foi fonte inaugural de um dos exemplos mais completos da atuação da
milícia digital do bolsonarismo. Tudo aconteceu no dia 16 de setembro, uma
sexta-feira.
* Às 9h57 da manhã, o BSM noticiou
que acabara de confirmar a autenticidade um áudio antigo de Lula, no qual o
petista teria dito que “ninguém teve a competência e a coragem de acabar com
esse cara”, supostamente reclamando que o ex-ministro Antonio Palocci ainda não
tinha sido assassinado.
* Às 10h10, o diretor executivo do
Brasil sem Medo, Silvio Grimaldo, fez um tuíte afirmando: “O BSM recebeu o
laudo de uma perita criminal aposentada da PF com vinte anos de experiência. A
análise técnica é enfática: a voz é do Lula.” Sua postagem – que está no ar até
hoje – já rendeu 2 230 retuítes.
* Às 10h28, Küster entrou no show com
o seguinte tuíte: “Exclusivo: Perícia confirma autenticidade de gravação de
2017 em que o ex-presidente comenta acusações de Antonio Palocci.”
* Às 11h41, o youtuber Gustavo Gayer,
outro membro ativo do “ecossistema da desinformação”, correu para Telegram e o
YouTube, onde postou um vídeo: “URGENTE – ACABOU PRO LULA! Áudio analisado por
perita confirma ser a voz do lula.” Era, segundo ele, a prova de “que não só
Lula é corrupto, mas também, aparentemente, de acordo com a análise do áudio, é
também mandante de crimes”.
* Às 12h11, Gayer compartilhou o link
do Twitter, repetindo, mais uma vez em maiúsculas: “acabou pro lula!”
* Às 12h35, o Terra Brasil Notícias,
site cujo mote noticioso é “Deus acima de tudo e de todos”, reproduziu a
notícia do BSM no seu Twitter.
* Às 16h36, Eduardo Bolsonaro, que já
tinha entrado no assunto, tuitou: “O PT não é um partido, é uma máfia. O
ex-presidiário é o gângster da facção.”
* Às 18h21, a deputada Bia Kicis,
publicou: “Bomba! Perícia da polícia garante que áudio de conversa de Lula é
autêntico. […] Esse criminoso não pode concorrer à Presidência.”
* Às 20h56, Carlos Bolsonaro endossou
a história em seu Twitter: “É fato e o áudio mais que sacramenta: o único
objetivo do descondenado é fazer todos pagarem e isto inclui você!”
* Às 21h46, “Embaixada Resistência”,
outro perfil da extrema direita, postou um trecho do laudo técnico pericial e
fez um desafio: “Refutem a perícia, militantes de redação!”
O vídeo de Gayer viralizou. Em 24
horas no ar, já tinha quase 600 mil visualizações. O tal laudo da perita da
Polícia Federal era uma enganação. Sabe-se que o áudio é falso desde 2017,
quando as agências de checagem constataram que a voz era de um imitador. A
coligação do PT pediu a remoção do conteúdo no dia seguinte, em 17 de setembro,
demonstrando que os checadores já haviam declarado a falsidade do áudio havia
pelo menos cinco anos. Nove dias depois, em 26 de setembro, o ministro Paulo de
Tarso Sanseverino, relator do caso no TSE, mandou derrubar os links mentirosos.
Em 3 de outubro, um dia depois do primeiro turno, o TSE referendou em plenário
a decisão de Sanseverino. Mas, até o fechamento desta reportagem, a decisão
ainda era descumprida pelo BSM, em cujo site estavam disponíveis a reportagem e
o áudio mentirosos.
Com todos os dados reunidos, o PT
bateu na porta do TSE em pleno domingo, 16 de outubro. Doze advogados, todos
vinculados aos escritórios de Cristiano Zanin e Eugênio Aragão, assinavam uma
peça jurídica com 245 páginas. Denunciavam – com dados, fatos, evidências – que
a rede bolsonarista tinha uma coordenação na disseminação de fake news contra o
processo eleitoral. O instrumento jurídico chama-se Ação de Investigação
Judicial Eleitoral (Aije).
A Aije acusa os integrantes do
“ecossistema de desinformação” de quatro violações: crime eleitoral, abuso de
poder econômico, abuso de meios de comunicação e abuso de poder político. Neste
último caso, a ação foca na conduta dos investigados que, com mandato eletivo,
atuam para “plantar uma ruptura de poderes, numa escalada autocrata de
eliminação do instrumento mais essencial do estado democrático de direito: o
sistema eleitoral e o voto direto”. Neste ponto, o alvo é Bolsonaro. Se
condenado, ficará inelegível por oito anos.
No caso do abuso de poder econômico,
a ação pede que o TSE investigue o financiamento das produções audiovisuais e o
impulsionamento dos conteúdos da rede bolsonarista. O alvo, aqui, são onze
pessoas, entre elas os donos da Brasil Paralelo e dos canais Folha Política
(Ernani Fernandes e Thais Raposo do Amaral) e Foco do Brasil (Anderson Rossi),
além dos youtubers do esquema (como Kim Paim e Gustavo Gayer) e dos empresários
Otávio Oscar Fakhoury, um bolsonarista já investigado no Supremo Tribunal
Federal (STF) por financiar milícias digitais, e José Pinheiro Tolentino Filho,
dono do Jornal da Cidade OnLine, um site de opinião e notícias pró-Bolsonaro. O
julgamento da Aije não tem data para acontecer. Pode levar seis meses ou três
anos, mas, enquanto não for julgada, ficará pairando como uma ameaça sobre a
cabeça dos envolvidos, incluindo Bolsonaro.
Quais as chances de sucesso da Aije?
A advogada Marilda Silveira, doutora em direito administrativo pela
Universidade Federal de Minas Gerais e ex-assessora jurídica de ministro do
TSE, diz que é cedo para avaliar a consistência da ação, pois ainda não se
encerraram as etapas de instrução e contraditório. Ela lembrou, no entanto, que
o TSE passou a admitir que as mídias digitais sejam consideradas nos mesmos
termos que a mídia tradicional, o que aumenta a chance de sucesso da ação no
quesito “uso indevido de meios de comunicação”.
O advogado Marcelo Weick, professor
da Universidade Federal da Paraíba, leu a íntegra da ação. “É uma das ações
mais bem-postas na questão do enfrentamento desse ecossistema massivo de
desinformação.” Ele diz que as Aijes anteriores – nos casos Dilma-Temer, por
caixa dois, e Bolsonaro-Mourão, pelo disparo em massa de mensagens via WhatsApp
– careciam de um conjunto robusto de evidências, mas acha que, no caso atual, é
possível entregar provas ampliadas. “Mesmo depois das eleições, você está tendo
atos antidemocráticos, suspensão de perfis, bloqueio de contas. Então, se o TSE
entender que tem uma concatenação, que é um ecossistema interligado, com
financiamento oculto, estará caracterizado o uso indevido dos meios de
comunicação e o abuso de poder econômico.”
Samara Castro, advogada com atuação
em direito digital e eleitoral, também avalia que a Aije está bem calçada. “Ela
pode ser totalmente comprovada. Seja pedindo que as plataformas confirmem as
informações alegadas na inicial, seja pela própria confirmação de prova que a
inicial traz”, disse. Castro acha que a ação de agora é superior à de 2018,
movida contra a chapa Bolsonaro-Mourão. “Na época, você não conseguia fazer
provas porque nem mesmo o WhatsApp conseguia nos ajudar por conta da
criptografia.”
A advogada observa que, ao denunciar
uma rede composta por 81 perfis, a ação pode ter tramitação lenta, mas entende
que, desta vez, o próprio tribunal estará sob escrutínio. “Seria uma
desmoralização para a Justiça Eleitoral não punir a desinformação”, diz. Sua
opinião está baseada no fato de que o TSE criou resoluções específicas para
atacar as mentiras nas redes sociais e fez todo um trabalho baseado nessa
diretriz. “É preciso que os candidatos de 2024 tenham medo. E isso só é
possível se houver punição, uma cassação ou inelegibilidade.”
De fato, o TSE se empenhou nesse
combate. Ainda durante a presidência do ministro Edson Fachin, o tribunal
marcou reuniões com todos os partidos representados no Congresso. Nesses
encontros, que contaram com a presença de presidentes e vices das siglas e de
seus advogados, Fachin anunciava que o combate à desinformação era prioridade.
Alexandre de Moraes, então vice-presidente do tribunal, alertava os dirigentes
partidários de que as ações judiciais que eventualmente viessem a ser
apresentadas precisavam estar bem embasadas. Numa ocasião, segundo uma fonte
que testemunhou a reunião, Moraes disse que os partidos deveriam “contratar
meia dúzia de moleques que sabem mexer com computador” para coletar dados
capazes de dar estofo às ações.
O tempo dirá se a Aije do PT chegou
lá. Mas a empreitada jurídica pode ganhar um aliado importante. O grupo
Sleeping Giants, que atua contra desinformação e discurso de ódio nas redes
sociais, vai pedir para participar da ação na condição de “amigo da corte”. Se
o pedido for aceito pelo TSE, o grupo pretende apresentar monitoramentos
detalhados do debate nas redes sociais que demonstram a capilaridade e o
impacto dos ataques ao sistema eleitoral, às urnas e à integridade das
eleições.
A principal preocupação do Sleeping
Giants, segundo consta na minuta da petição a ser apresentada ao TSE, é com o
impacto da “ampla rede de desinformação que se profissionalizou em criar
discursos diretos e indiretos capazes de despertar a animosidade da população
com relação à legitimidade dos resultados obtidos da apuração das urnas
eletrônicas”. O grupo monitorou a disseminação do discurso de ódio e de
desinformação entre candidatos a deputado federal. Concluiu que tais discursos
se intensificaram no segundo turno da campanha presidencial. Entre seus
expoentes, há bolsonaristas eleitos neste ano, como Carla Zambelli, Eduardo
Bolsonaro, Nikolas Ferreira, Gustavo Gayer, Bia Kicis e Ricardo Salles.
Além da Aije, o PT planeja apresentar
outras duas ações. Quer uma investigação sobre “compra institucionalizada de
votos”, uma referência à inclusão de mais de 500 mil novos beneficiários do
Auxílio Brasil em pleno período eleitoral, bem como a distribuição de auxílio a
taxistas e caminhoneiros, além da abertura de crédito excepcional pela Caixa. A
outra ação diz respeito aos ataques de Bolsonaro contra as instituições
democráticas e o sistema eleitoral, que atentam contra o regime democrático.
Ainda que o “ecossistema de
desinformação” tenha continuado ativo na campanha, a milícia digital bolsonarista
sentiu o golpe antes e durante a campanha. Com a estratégia digital e jurídica,
o PT incomodou algumas das vozes mais influentes do show do Jair. “Stálin
apagava pessoas de fotos e reescrevia a história. Hoje, tribunais apagam
posts”, postou Eduardo Bolsonaro no Twitter, quando o TSE mandou as redes
sociais apagarem posts sobre o “kit gay”, fake news que marcou a eleição de
2018.
“Essa campanha percesecutória [sic]
do PT contra influenciadores de direita não tem como objetivo apenas nos
censurar, mas também produzir um ambiente de medo, evitando a manifestação das
pessoas sobre o ex-presidiário. É assim que seus ditadores amigos na Venezuela
e Nicarágua operam”, tuitou Leandro Ruschel em 11 de outubro, entre o primeiro
o segundo turno. O comentário foi apagado mais tarde.
Bernardo Küster, num tuíte do início
de setembro, deixou claro que a estratégia do PT acertara na mosca e relacionou
os temas com os quais o bolsonarismo queria trabalhar: “TSE faz de tudo para
diminuir os feitos de Bolsonaro e evitar que brasileiros associem Lula/PT à
corrupção, PCC, ditadura na Nicarágua, perseguição aos cristãos, comunismo,
aborto, invasão de terra, aumento de impostos e do poder estatal, narcotráfico,
desarmamento e censura.” O post apareceu em sua conta alternativa no Twitter
porque a conta principal estava – e assim continua – bloqueada por decisão
judicial.
Um tuiteiro contumaz da direita,
Geovane Moraes, que se identifica como professor de direito penal, fez um tuíte
no início de setembro em que já mostrava o resultado do trabalho jurídico dos
petistas. “Os parlamentares de direita preferiram investir em # e mitar nas
redes. O PT montou uma força-tarefa de advogados nunca antes vista. Resultado:
os candidatos da direita estão desprotegidos juridicamente e apanhando todo
dia”, escreveu, em tom de reclamação. “Pessoas como a Dra. @flferronato
cansaram de avisar”, concluiu, referindo-se à advogada bolsonarista Flavia
Ferronato, uma spin doctor da rede.
Em um relatório sobre o mapeamento do
“ecossistema da desinformação” da extrema direita, os pesquisadores Fernanda
Sarkis e Marcus Nogueira comentam a reação dos bolsonaristas ao trabalho
jurídico do PT. “Esse papel não passa despercebido pela rede bolsonarista, que
compreende que há duas formas de disputar a ocupação de espaço de uma
narrativa, nas ‘hashtags’ e nos ‘tribunais’”.
A disputa nos tribunais explica por
que o ministro Alexandre de Moraes, na condição de presidente do TSE, tornou-se
alvo predileto dos bolsonaristas. Em uma de suas ações mais drásticas para
combater as fake news, Moraes fez uma resolução que ampliava bastante os
poderes do tribunal. Com a resolução, editada em 20 de outubro, os ministros
passaram a poder barrar a divulgação de conteúdo falso por conta própria, sem a
necessidade de serem acionados por alguém que se sinta prejudicado. A
Procuradoria-Geral da República moveu uma ação contra a resolução por
considerá-la inconstitucional. O STF rejeitou-a por 9 votos a 2, mas não
afastou por completo as acusações de que Moraes e o próprio tribunal estavam
indo longe demais, aproximando-se perigosamente da censura.
Agora, com grupos bolsonaristas se
insurgindo contra o resultado das eleições e adotando a pregação golpista, a
resolução está sendo útil. Até o fechamento desta reportagem, foram derrubados
os perfis de seis deputados – quatro no exercício do mandato e dois
recém-eleitos. Não se sabe a fundamentação exata, pois as decisões de Alexandre
de Moraes estão sob sigilo. Um dos eleitos, Gustavo Gayer, ignorou a decisão,
abriu uma nova conta no dia 7 de novembro e, duas semanas depois, quando já
reunia mais de 250 mil seguidores, voltou a ser banido.
Alexandre de Moraes não se intimida
com as críticas. No dia 14 de novembro, em evento empresarial em Nova York, fez
um discurso claro sobre esse sistema de desinformação nas redes sociais e não
se furtou a mencionar indiretamente as acusações de censura. “Sob o falso manto
de liberdade sem limites, o que se pretende é corroer a democracia”, disse.
Também afirmou que “a democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu”. Para
ele, a atuação do Judiciário no processo eleitoral representou “barreira para
qualquer ataque à democracia e à liberdade”.
Tudo considerado, a professora Rose
Marie Santini, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, acha que acionar a via judicial para combater a desinformação
bolsonarista foi “fundamental para dar um limite”. Em 2018, não houve nada
parecido. Santini, que é também diretora do NetLab, organização que colaborou
com o TSE nesta eleição, destaca que, agora, havia duas máquinas para
enfrentar: a do Estado, sob o comando de Bolsonaro, e a das fake news de sua
milícia digital. “A do Estado não tinha como enfrentar. Mas conseguiram
enfrentar a da desinformação. Acho que a oposição foi bem-sucedida, e a prova
disso é que ganhou a eleição”, diz ela, ao advertir: “Eles foram derrotados,
mas estão muito vivos.”
Breno Pires - Repórter da piauí baseado em Brasília, foi jornalista investigativo no Estadão.
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