MULHERES VIOLADAS
Em
carta comovente direcionada ao deputado Arthur do Val, correspondente
internacional Jamil Chade descreve o que viu por duas décadas em campos de
refugiados e em filas de pessoas desesperadas para escapar da guerra e da
pobreza
porJamil Chade*
A CONDIÇÃO FEMININA NA GUERRA E NA PAZ
Senhor deputado,
Confesso que não conhecia seu nome, e nem sua
denominação de guerra. Mas os áudios indigestos que vazaram com seus
comentários sobre a situação na Ucrânia me obrigaram a escrever aqui algumas
linhas sobre o que eu vi em campos de refugiados e filas de pessoas
desesperadas para escapar da guerra e da pobreza ao longo de duas décadas.
Não estou acusando
o senhor e sua comitiva do que estará exposto abaixo. Mas considero que, sem
entender essa dimensão do sofrimento humano, fica impossível justificar uma
viagem como a que o senhor faz para ajudar a defender um povo.
Ao longo da
história, a violência sexual é uma das armas de guerra mais recorrentes para
desmoralizar uma sociedade. Ela não tem religião, nem raça. Ela destrói.
Demonstra o poder sobre o destino não apenas das vidas, mas também dos corpos e
almas.
Percorrendo campos
de refugiados em três continentes, o que sempre mais me impressionou foi a
vulnerabilidade das mulheres nessa situação.
Mas, antes, vamos
ser claros aqui. Não precisamos sair do Brasil para saber que as mulheres,
simplesmente por serem mulheres, precisam passar a vida se explicando. Como se
necessitassem de chancela ou justificativa para determinar o destino de seu
corpo ou coração, se podem trabalhar ou ter tesão. Intolerável, não?
Então, o senhor
pode imaginar o que isso significa em tempos de guerra, onde a lei e a moral
são suspensas?
Conheci certa vez
uma garota yazidi. Ela me contou como, depois de sua cidade ser tomada por
islamistas, ela foi transformada em escrava sexual. Aqueles olhos verdes
intensos se enchiam de lágrimas quando contava que, num calabouço, ela e as
demais meninas se dividiam em dois grupos.
Aquelas que
rezavam para sobreviver e aquelas que rezavam para morrer logo.
Ela também me
contou que, num ato de solidariedade com as outras mulheres que viriam depois
delas, foi iniciado um gesto espontâneo de escrever mensagens nas paredes
daqueles quartos imundos, inclusive com dicas de como agir. Escreviam com a
única cor que tinham. O vermelho do sangue de suas vaginas estupradas.
O senhor me diria:
claro, isso é coisa de terrorista islâmico. Sim, sem dúvida. Mas quero lhe
contar o que investigações e auditorias revelaram em um local mais próximo de
nós: o Haiti.
Ali e em outros
locais onde estão destacadas, as tropas de paz da ONU – repletas de moral,
credibilidade e protocolos – foram acusadas de estupro e de abusos com
mulheres, meninas e meninos. Alguns, em troca de comida. Num caso específico,
um garoto era semanalmente estuprado por oficiais, em troca de bolachas. Há até
mesmo uma categoria de crianças hoje nesses países, “os filhos da ONU”.
Na Sérvia, num
barracão onde eram depositados os refugiados que aguardavam para chegar até a
Europa Ocidental, conheci uma mulher que não falava. Sua irmã, depois, veio me
explicar que ela ficou muda depois de ter sido estuprada pelo “guia” que seus
pais tinham contratado na Turquia para que elas cruzassem as fronteiras. Para
pagar pelo guia, os pais venderam as únicas coisas que tinham: uma casinha e
dois animais.
Em Dadaab, no
Quênia, entendi toda a minha ignorância quando fui perguntar para um grupo de
crianças do que elas tinham mais medo. Achei que a resposta seria: as bombas de
Mogadíscio. Mas era do escuro do campo de refugiados. Quando pedi para saber o
motivo, uma delas sussurrou: “não podemos nem ir ao banheiro pela noite. Um
homem pode fazer coisas ruins com nosso corpo”.
Anos depois,
voltei a viajar para a África. Da janela do avião a hélice em que eu voava,
podia ver como um garoto usava um pedaço de galho para tentar dirigir o destino
de vacas e outros animais. Enquanto ele conseguia dar direção ao gado, algumas
reses escapavam um pouco adiante.
Do assento em que
eu estava, quase não consegui ouvir quando o piloto se virou para trás e,
competindo com o barulho do motor, gritou que estávamos iniciando a
aterrissagem. Jamais imaginaria que, minutos depois, era sobre aquele local de
terra de onde o garoto estava retirando os animais que o avião iria pousar. O
que de fato eu tinha visto era a preparação da pista de pouso.
Eu tinha viajado
para um lugar a oeste da cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, para escrever sobre o
impacto da Aids numa das regiões mais pobres do planeta. Mas seria naquele
local que eu descobriria, de uma maneira inusitada, a dimensão do drama de
imigrantes e refugiados. Ao longo dos anos, visitei campos de refugiados na
fronteira do Iraque, entre o Quênia e a Somália, em Darfur, na rota entre a
Turquia e a Europa. Vi milhares de pessoas sem destino. Mas, nas proximidades
de Bagamoyo, aquela história era diferente. Oficialmente, não havia uma guerra.
Não havia um acampamento de refugiados. Mas eu logo descobriria que nem por
isso o desespero deixava de estar presente naquela população.
Eu fazia uma
visita a um hospital e esperava para falar com o diretor. Por falta de médicos,
ele fora chamado para fazer um parto. Sabia que aquilo significava que eu
passaria horas ali, à espera de minha entrevista. Restava fazer o que eu mais
gostava nessas viagens: descobrir quem estava ali, falar com as pessoas,
perambular pelo local, ler os cartazes e simplesmente observar. No portão do
centro de atendimento, centenas de mulheres com seus véus coloridos aguardavam
de forma paciente. Tentavam afastar as moscas, num calor intenso, enquanto o
choro de crianças rompia os muros descascados daquela entrada de um galpão
transformado em sala de espera.
Ao caminhar para
uma das alas, fui barrado. Os enfermeiros me pediram que não entrasse no local.
Quando perguntei qual era a especialidade daquela área, disseram que não podiam
revelar. Em partes da África, o preconceito e o estigma em relação aos
pacientes de Aids obrigam os hospitais a não indicar nem em suas paredes o nome
da doença. Decidi sair do prédio em ruínas e, num dos pátios do hospital, vi
duas garotas brincando.
Não tinham mais de
10 anos de idade. E o único momento em que olharam para o chão, sem resposta,
foi quando perguntei o que faziam ali. Mas a curiosidade delas em saber o que
um rapaz branco, com um bloco de notas na mão e uma câmera fotográfica, fazia
lá era maior que sua vontade de contar histórias. Desisti de seguir com minhas
perguntas. Expliquei que era jornalista brasileiro e, para dizer meu nome,
mostrei um cartão de visita, que acabou ficando com elas.
Quando iam
responder à minha pergunta sobre os seus nomes, nossa conversa foi interrompida
por uma senhora que, da porta do hospital, me avisava que o diretor já estava à
disposição para a entrevista. Deixei aquelas crianças depois de menos de cinco
minutos de conversa. Já caminhando, virei e disse uma das poucas expressões que
tinha aprendido em suaíli: kwaheri – “adeus”. Ganhei em troca dois enormes
sorrisos.
Terminada a
entrevista com o diretor do hospital, confesso que nem sequer notei se as
meninas continuavam ou não no pátio. Estava ainda sob o choque de um pedido do
gerente da clínica, que, ao terminar de me explicar o que faziam, me perguntou
se eu não poderia deixar para eles qualquer comprimido que tivesse na mala.
Qualquer um. Até mesmo se o prazo de validade já tivesse expirado.
Alguns meses depois, já
na Suíça, abri minha caixa de correio de forma despretensiosa ao chegar em
casa. Num envelope surrado e escrito à mão, chegava uma carta de Bagamoyo.
Pensei comigo:
deve ser um erro e a carta deve ter sido colocada na minha caixa por engano. Eu
não conheço ninguém em Bagamoyo. Mas o envelope deixava muito claro: era para
Jamil Chade.
Antes mesmo de
entrar em casa, deixei minha sacola no chão e abri o envelope. Uma vez mais,
meu nome estava no papel, com uma letra visivelmente infantil. Eu continuava
sem entender. Até que comecei a ler. No texto, em inglês, quem escrevia
explicava que tinha me conhecido diante do hospital e que tinha meu endereço em
Genebra por conta de um cartão que eu lhe havia deixado.
Como num sonho, as
imagens daquelas garotas imediatamente apareceram em minha mente. Mas o
conteúdo daquela carta era um verdadeiro pesadelo. A garota me escrevia com um
apelo comovedor. “Por favor, case-se comigo e me tire daqui. Prometo que vou
cuidar de você, limpar sua casa e sou muito boa cozinheira.” A carta contava
que sua mãe havia morrido de Aids – naquele mesmo hospital – e que seu pai
também estava morto.
Cada um dos oito
filhos fora buscar formas de sobreviver e ela era a última da família a ter
permanecido na empobrecida cidade. “Preciso sair daqui”, escrevia a garota. A
cada tantas frases, uma promessa se repetia: “Eu vou te amar.”
Uma observação no
final parecia mais um atestado de morte: “Com as últimas moedas que eu tinha,
comprei este envelope, este papel e este selo. Você é minha última esperança.”
Deputado, talvez o
senhor classificaria essa pessoa no grupo de “meninas fáceis”. Eu, porém,
chorei de desespero e de impotência diante daquele pedido de resgate.
Eu e o senhor –
homens brancos – nascemos como a classe mais privilegiada do planeta. Eu e o
senhor não tivemos de fazer nada para adquirir esses privilégios. Existimos.
É nossa obrigação,
portanto, desmontar o processo de profunda desumanização de uma guerra e da
miséria. Cada um com suas armas.
Não sei qual será
o destino que a Assembleia Legislativa em São Paulo, seu partido e seus
eleitores darão ao senhor. Qualquer que seja ele, só espero que esse episódio
revoltante sirva para que haja alguma insurreição de consciências sobre a
condição feminina. Na guerra e na paz.
Grato pela atenção
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