Não
tenhamos ilusões: as Forças Armadas
apoiarão, sim, um autogolpe de Bolsonaro
por
José Dirceu
Frente à crescente reprovação de seu governo pela maioria do país e ao
aumento do apoio popular a seu impeachment, Jair Bolsonaro não deixa dúvidas de
que pretende dar um autogolpe de Estado. O militarismo está de volta e a
politização das Forças Armadas será inevitável, se não reagirmos e não dermos
um basta a toda e qualquer ação militar fora dos marcos da Constituição
Não há mais dúvidas. De novo nosso Brasil e sua democracia enfrentam o
risco e a ameaça do militarismo. Não se trata apenas de presença de 3 mil
militares, inclusive da ativa, no governo federal, mas da tutela aberta militar
sobre o país, da volta do militarismo, da politização das Forças Armadas.
Não será a primeira vez. Toda nossa história republicana está marcada
pela atuação dos militares como uma força política — no caso armada —,
disputando o poder e os rumos do país. Foi assim na instauração da República em
1889; nos anos 1920 e 1930 com o tenentismo; em 1937 quando o Estado Maior do
Exército apoia o autogolpe de Getúlio do Estado Novo. Durante toda década de
1950, facções das Forças Armadas aliadas à direita tentaram dar golpes de
Estado: em 1950 para impedir a posse de Getúlio; em 1955, para impedir a posse
de JK; em 1961 para impedir a posse de Jango como presidente. Se os três
primeiros fracassaram, o quarto golpe, em 1964, foi vitorioso, com a
destituição pela força das armas de um governo constitucional e democrático que
contava com o apoio da maioria do povo.
É preciso registrar que os dois golpes em que os militares assumiram o
poder, de 1937 a 1945, na ditadura do Estado Novo, com Vargas, e de 1964 a
1985, com militares diretamente no comando do país, foram marcados pela
impunidade. São fatos históricos. Os militares brasileiros que torturaram e
assassinaram durante a ditadura militar jamais reconheceram seus crimes, dos
quais, aliás, foram anistiados, caso único na América Latina.
Não há uma ala militar ou um núcleo militar no governo Bolsonaro. Seja
pela razão que for, o governo é militar, a presidência e o Palácio do Planalto,
oito dos 22 ministérios e cada vez mais militares assumem as secretarias de
outros ministérios como no da Saúde, sem falar das estatais e autarquias. A
cada dia fica evidente que as operações políticas e planos do governo, como o
Pro-Brasil, são realizadas pelos militares. Suas digitais estão em movimentos
como a cooptação do Centrão para a base do governo na Câmara dos Deputados com
distribuição de cargos, ou a guerra política contra a oposição, o STF e a
imprensa. Estão presentes na orientação das políticas indígena, ambiental e
educacional, e na gravíssima rendição total aos Estados Unidos na política
externa, com a alienação de nossa soberania.
Os militares aderiram e apoiam toda gestão de Paulo Guedes na economia
do país, inclusive o desmonte dos bancos públicos e as privatizações, a entrega
das reservas e da riqueza e renda do Pré-sal, o desmonte da saúde e da educação
pública, das universidades e centros de pesquisa. Mas, cinicamente, salvaram
dos cortes e das reformas as estruturas militares, o orçamento das Forças
Armadas, que não foi contingenciado, e sua Previdência. Enquanto o povo amarga
uma reforma da Previdência que aumenta anos de trabalho, reduz benefícios e
penaliza os pobres, os militares mantiveram seus privilégios: paridade, integralidade,
sem limite de idade para aposentar, gratificações, verbas, ajudas, aumento real
de vencimentos de 45%. Uma casta.
Tutela militar
Esta tutela se expressa desde o governo Temer. Quando do julgamento do
HC de Lula na Suprema Corte, o então comandante do Exército, general Eduardo
Villas Boas, publicou um twitter expressando que as Forças Armadas não o
aceitariam e, o mais grave, publicou a foto da reunião do Estado Maior do
Exército para demonstrar o apoio que tinha para praticar aquele crime constitucional.
O mesmo Villas Boas que, agora na reserva, saiu em defesa da secretária da
Cultura, Regina Duarte, que em entrevista recente defendeu a ditadura.
No dia 31 de março deste ano, os três comandantes militares assinaram
uma nota de elogio e apoio ao golpe militar de 1964, sem que os poderes e as
instituições se manifestassem ou coibissem essa escalada das Forças Armadas
rumo ao poder. Mesmo na oposição e na mídia, poucas vozes se levantaram para
protestar.
Frente à crescente reprovação de seu governo pela maioria do país e ao
aumento do apoio popular a seu impeachment, Jair Bolsonaro não deixa dúvidas de
que pretende dar um autogolpe de Estado. De novo vemos a ilusão política que
não haverá golpe de Estado. Não é bom acreditar em ilusões, quando já temos um
governo militar e aqui, na vizinha Bolívia, foi dado um violento e covarde
golpe de Estado com a Polícia Militar. Para o Exército sobrou a tarefa de
exigir a renúncia do presidente Evo Morales.
É certo que razões políticas não bastam e não devem ser a justificativa
para o impedimento constitucional de um presidente. É golpe parlamentar, como
foi contra a presidente Dilma Rousseff, com a anuência e conivência da Suprema
Corte. Mas todos os dias o presidente viola a Constituição e manifesta publicamente
sua disposição rumo ao autoritarismo. Está evidente que ele capturou os órgãos
de fiscalização, investigação, seja o COAF, a Receita Federal, o Ministério
Público e agora a polícia judiciária da União, a Polícia Federal, para evitar
exatamente a apuração e as investigações e processos contra sua família,
filhos, partido, campanha e atuação na presidência, evitando assim um
julgamento judicial ou pelo parlamento.
Se não encontra reação, sua estratégia, no curto prazo, continua sendo a
de provocar e avançar sobre os outros poderes. A médio é formar uma maioria na
Câmara, eleger em fevereiro do ano que vem um presidente alinhado com o governo
e ao mesmo tempo esperar as aposentadorias na Suprema Corte para tentar anular
sua ação constitucional. Objetivos que podem não ser alcançados e seu governo
se arrastar até 2022, o que não seria um problema não fosse a gravíssima crise
que o mundo e o Brasil vivem. A ação de Bolsonaro contra o isolamento social e
a verdadeira sabotagem que ele e seu governo fazem em plena pandemia que já
matou mais de 11 mil brasileiros já são razões mais do que suficientes para seu
afastamento da presidência.
Hora de reagir
A oposição liberal de direita, os partidos PSDB-DEM-MDB e a grande mídia
– ainda que aos poucos seus editoriais revelem o temor de um golpe – com
exceções, não apoiam o impeachment do presidente. Evitam também a questão
militar, preferindo apostar que as Forças Armadas como instituição não
apoiariam um autogolpe. Esquecem as lições da história e o fato concreto de que
Bolsonaro agita os quartéis, apela aos oficiais com comando e tem nas PMs e
empresas de segurança uma reserva armada à sua disposição, fora suas milícias
que hoje ocupam a Praça do Três Poderes exigindo o fechamento do Congresso
Nacional e do Supremo.
O militarismo está de volta e a politização das Forças Armadas será
inevitável, quase automática, se não reagirmos e não colocarmos um basta a toda
e qualquer ação militar fora dos marcos da Constituição. E a toda e qualquer
ação do presidente quando viola a Constituição usando as Forças Armadas ou as
invocando.
Espero que não acreditemos em notas oficiais dos militares que repudiam
o golpe ou reafirmam sua vocação democrática – incompatível com o apoio e a
louvação ao golpe militar de 1964. A tradicional aversão militar ao conflito
inerente à democracia, seu elitismo de achar que o povo não sabe votar, sua
convicção recebida nas escolas militares de que eles são os únicos patriotas,
seu histórico de formação positivista como o déspota esclarecido que Geisel bem
representou, seu corporativismo exibido sem pudor na votação da reforma da
Previdência, são ingredientes que apenas devem aumentar nossa convicção de que
os militares têm que estar fora da política. Não podem ser agentes políticos
pela simples razão que a nação os armou para a defender e não para a tutelar ou
para nos submeter à tirania e à ditadura.
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