quarta-feira, 20 de julho de 2022

"Navegar é PRECISO; viver não é PRECISO" ! ! !


"Os Argonautas" de Caetano Veloso (1969)


[Navegar é Preciso] É um texto famoso de Fernando Pessoa, desses que se incorporam à memória cultural de um povo. Cito de memória: "Navegadores antigos tinham um lema: navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim este lema, adaptando-o à minha vida e à minha missão no mundo: viver não é necessário, o que é necessário é criar."

Para a minha geração, a frase lembrada por Pessoa foi popularizada por Caetano Veloso em sua canção "Os argonautas", no seu "disco branco" saído em 1969, logo após sua prisão pelo regime militar.



Nenhum de nós tinha a menor ideia de quem fosse Fernando Pessoa. Era apenas um nome que Caetano tinha bradado, enfurecido, para a plateia que o vaiava durante sua interpretação de "É proibido proibir", num daqueles festivais.

Com a vaia, o cantor interrompeu o canto e disparou na direcção da plateia um monólogo a plenos pulmões com uns dez minutos de duração, no qual, a certa altura, gritava: "Hoje não tem Fernando Pessoa!" (*)

(*) [Caetano Veloso ia interpretar "É Proibido Proibir" com Os Mutantes, pretendendo, inicialmente, incluir um texto de Fernando Pessoa para homenagear a actriz Cacilda Becker que estava a ser pressionada para rescindir o seu contrato com a televisão]




Fernando Pessoa? Quem diabo é esse cara? Corremos todos para as enciclopédias e descobrimos que era um "poeta modernista português, falecido em 1935". Ficamos mais perplexos ainda. Oi... quer dizer que o Modernismo tinha chegado em Portugal?!

Pensávamos que Portugal tinha estacionado em Camões e Gil Vicente.
Aí saiu um compacto [single] simples, tendo no lado B a faixa "Ambiente de festival", com a vaia do teatro e a diatribe de Caetano, e no lado A a canção "É proibido proibir" ("A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão... e estava escrito no portão..."), na qual, a certa altura, brotava a voz surda e angustiada de Caetano recitando: "Esperai! Cai no areal e na hora adversa que Deus concede aos seus..."


Eram os versos do poema "D. Sebastião", na parte III de "Mensagem", único livro publicado em vida por Fernando Pessoa. Até hoje não sei o que diabo têm a ver Dom Sebastião e o slogan "É proibido proibir"; mas foi este talvez o primeiro link "pessoano" na obra de Caetano, retomado depois com "Os argonautas": "O barco... meu coração não aguenta tanta tormenta, alegria, meu coração não contenta..."

Era um fado nostálgico em tom menor, ao som de bandolins, onde se misturavam temas como a navegação sem rumo e o vampirismo ("O barulho do meu dente em tua veia... o sangue, o charco..."). E o refrão, em tom maior ascendente, triunfante: "Navegar é preciso... Viver não é preciso!"





Só muitos anos depois é que vi comentários sobre a ambiguidade da frase. "Precisão" pode significar necessidade: navegar é necessário, viver não é necessário. Mas pode significar também exactidão, e aí teríamos: navegar é uma ciência exacta, viver não o é.

O que está muito mais de acordo com os argonautas da Escola de Sagres, com suas bússolas, astrolábios e portulanos. Naufrágios, calmarias e tempestades, no entanto, nos mostram a ingenuidade dessa distinção. Viver e navegar estão submetidos ao mesmo princípio de incerteza. Não nos esqueçamos de que para navegar é preciso viver, não é preciso?


Letra

o barco, meu coração não aguenta
tanta tormenta
alegria, meu coração não contenta
o dia, o marco, meu coração
o porto, não
navegar é preciso
viver não é preciso,
o barco, noite no teu tão bonito
sorriso solto perdido
horizonte, madrugada
o riso, o arco, da madrugada
o porto, nada
navegar é preciso
viver não é preciso
o barco, o automóvel brilhante
o trilho solto, o barulho
do meu dente em tua veia
o sangue, o charco, barulho lento
o porto silêncio

 

Fonte: Braulio Tavares (Publicado no Jornal da Paraíba, edição de 25 de julho de 2004)

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