“Meu nome é Marina dos Santos, tenho 48 anos, sou filha de
camponeses do Paraná. Meus pais são de Barbacena, Minas Gerais. A família do
meu pai é muito grande, são 14 irmãos. Meu avô tinha uma terrinha, mas, como
eram muitos filhos, meu pai e minha mãe saíram de Barbacena e foram morar no
oeste do Paraná. Nasci em Cascavel e fui criada em Guarani-Açu. Somos em sete
irmãos”
Trabalhando
na colheita do café, meu pai conseguiu comprar uma terrinha em Guarani-Açu. Mas
não durou muito tempo. No início dos anos 1980, quando eu tinha entre 7 e 8
anos, meu pai perdeu a terra por conta de um empréstimo no banco e fomos morar
num bairro de periferia.
Lá eu estudava e
trabalhava aos finais de semana. Aos 10 anos, precisei parar de estudar e fui
trabalhar de boia-fria com meu pai. Mas eu queria continuar estudando. A gente
participava das atividades da igreja na comunidade e eu ficava encantada com a
sabedoria das freiras. Aí decidi entrar no convento para poder estudar. Era um
convento de freiras franciscanas ligado às Comunidades Eclesiais de Base. Com
12 anos eu já lecionava catequese no bairro e auxiliava nas missas.
Um dia, em 1989, o frei me chamou para auxiliá-lo numa missa no acampamento sem-terra. Eu nunca tinha ouvido falar de sem-terra, de ocupação, de invasão. O acampamento era recente e enorme, tinha 300 famílias, quase 2 mil pessoas. Antes da missa, participei de uma reunião da juventude. Eram muitos jovens e um clima de alegria. Eles tocavam violão, cantavam. Eu senti a mística daquilo. Na reunião, eles discutiram como iriam pressionar a prefeitura para conseguir um ônibus escolar e queriam construir uma escola para eles, usando a sede abandonada da fazenda ocupada.
Depois daquela reunião, fizemos a
missa. Foi uma missa campal, aquela multidão de gente. Toda a simbologia da
missa era a simbologia da luta do campo. Na hora do ofertório, eles ofertaram a
terra, os instrumentos de trabalho, a lona preta, que é a casa deles. A
eucaristia foi feita com pães enormes assados no forno. O frei benzia os pães,
depois pegava um pedaço de pão e oferecia a cada um. Aquilo foi muito bonito,
me emociono até hoje de lembrar.
Na hora de ir embora, falei para o
frei: "Frei, o que eu quero lá no convento tá aqui. Eu vou ficar". E
fiquei até hoje. Assim foi a minha entrada no movimento, há 32 anos, por causa
de uma missa. Hoje sou dirigente nacional do MST no setor de frente de massas.
Passei dois anos mentindo lá em casa e só depois criei coragem para
contar que estava morando no acampamento sem-terra. Depois que contei, minha
família me apoiou muito.
Tenho uma irmã que ficou no convento e está lá até
hoje. E eles ainda fazem as celebrações no campo. A igreja sempre teve um papel
fundamental nos acampamentos e assentamentos, principalmente através das
pastorais sociais, a CNBB e a Comissão Pastoral da Terra. São essas entidades
que trazem para a sociedade os debates a respeito do latifúndio, da
concentração de terra, das desgraças que o latifúndio traz para a vida das
pessoas e para a questão social e econômica do país.
Eu sempre usava nos
trabalhos de base das ocupações aquele texto bíblico do Paraíso, da "terra
onde vai jorrar leite e mel". Esse é o projeto da luta camponesa,
distribuir a terra, desenvolver o campo, produzir fartura, produzir comida.
Ainda sou católica, mas nas últimas décadas a
igreja havia dado uma guinada para a direita. Agora, nos últimos anos, com o
Papa Francisco, a gente sente algumas transformações. Ele elogiou e agradeceu o
MST pelo combate à fome. Fizemos um encontro em Santa Cruz de La Sierra, na
Bolívia, com o Papa. Eu participei de todo o processo organizativo. Aquilo é a
minha igreja, a minha fé.
Em 1996, deixei o Paraná e fui para Campos dos
Goytacazes (RJ). Quando cheguei às fazendas de cana, vi pela primeira vez o que
era um trabalhador em situação análoga à escravidão. Eu tinha 21 anos. Fiquei
muito chocada com aquilo. Eu me perguntava: "Meu Deus, isso é o Brasil
mesmo?".
Entre 2006 e 2011, fiquei em Brasília coordenando o
escritório nacional do MST. Foi um período de muito aprendizado. De 2014 a
2017, fui para a coordenação internacional na Via Campesina. Aí minha vida
tomou outra dimensão, outra escala. Viajei o mundo inteiro, fui para a América
Latina, para a África. O contato direto com outra realidade é muito
enriquecedor.
Em 2003, o MST decidiu que todos os núcleos de base
teriam que ser coordenados por um homem e uma mulher. Isso gerou muitas
transformações, trouxe uma qualidade muito grande para o movimento e gerou uma
transformação da cultura machista. As mulheres são muito inteligentes, temos
mais dinamismo na vida. As mulheres trouxeram ordem, disciplina, planejamento,
seriedade no cumprimento das tarefas e também a leveza, a mística, a poesia, a
cantoria, ter as crianças fazendo parte.
Eu tinha 14 anos quando fiquei no acampamento. Imagina uma menina que
não podia fazer o ginásio para ter que trabalhar de boia-fria para sobreviver e
hoje conheceu o mundo, estudou e concluiu seu mestrado esse ano.
Fiquei tão feliz de ter concluído meu mestrado.
Estudei a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, que
foi uma conquista dos movimentos populares, aprovada pela ONU em 2018.
O Brasil é um dos países que mais concentra terras
no mundo. Segundo o censo agropecuário do IBGE de 2017, 1% dos proprietários
têm 46% das terras para agricultura. Muitas dessas terras são improdutivas ou
não cumprem as legislações ambientais e trabalhistas.
Essas terras automaticamente deveriam ser
destinadas à reforma agrária. Se o estado brasileiro pegasse os grandes
latifúndios que não cumprem sua função social e transformasse em assentamentos,
teríamos uma outra realidade no campo.
O agronegócio tinha que ser um pouco mais
responsável, pelo menos, com as questões do alto uso de agrotóxicos, o
desmatamento, o fogo na Amazônia e a exploração da força de trabalho. Não dá
para querer transformar tudo em lucro à base de tanta destruição. Não dá para
defender isso. Claro que existem interesses econômicos, mas essa coisa que eles
falam do "agro é pop" tem que ter o mínimo de responsabilidade.
Não dá para mentir
assim descaradamente. Temos 19 milhões de brasileiros passando fome. Cadê esse
agro pop? O povo precisa comer.
Apesar do momento político atual, vejo os
movimentos populares em sua melhor fase. Estou esperançosa. Mas não vai cair do
céu. A esquerda tem que se olhar para se fortalecer. Temos que ter clareza de
tudo o que foi feito, de todos os direitos que foram tirados da classe
trabalhadora.
Há um ano, perdi um irmão para a covid. Tivemos 600
mil vidas perdidas pela forma irresponsável como o governo tratou, mas na
política estamos vivos. Vamos ter que dedicar esforços para derrotar o
bolsonarismo e somar forças para voltar a debater um projeto popular para o
Brasil."
Marina dos Santos, 48 anos, é dirigente nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no setor de frente de massas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário