Me dou de PESENTE (nesta data) este artigo !!!

Bilhete pra um operário
Pegaram um dia um operário e disseram-lhe: Senta-se
no banco dos réus.
És acusado de
haveres nascido com sonhos na cabeça. És acusado de teres os cabelos encaracolados.
És acusado de teres bigodes vastos, negros, provocativos.
És acusado de teres alguns pedaços de dedos a menos
que o comum dos mortais, podados pelas engrenagens das máquinas.
És acusado de
ficares pelas esquinas conversando em voz baixa com amigos enquanto a luz dos
postes te ilumina o suor do rosto. És acusado de terem te visto no bar dando
gargalhadas.
És acusado de tua
casa ter um pequeno jardim com grama e flores.
És acusado de conheceres a sinfonia das sirenes das
fábricas anunciando a aurora do primeiro turno. És acusado de seres reconhecido
na portaria e todos te cumprimentarem, e te baterem levemente nas costas com
alegria, e te dizerem: olá, meu chapa.
És acusado de inventares um partido que não é o
único, mas não se confunde com siglas e teorias de alfarrábios envelhecidos.
És acusado de
fazeres discursos de improviso com vigor e garra que nascem do fundo das
vísceras do espírito.
És acusado de não
seres magro nem raquítico como teus irmãos deviam ser.
És acusado de jogares baralho e dares dores de
cabeça aos homens sérios deste país. És acusado de usares gravata em vez de
macacão, vestindo-te com roupas só permissíveis no enterro do melhor amigo. És
acusado de frequentar reuniões e discutires com sábios e iluminados sem pedir
licença nem apresentar diploma. És acusado de te haverem visto com ministros,
criaturas importantes, e não te ocorrer submeter-se a elas.
És acusado de não teres te colocado no lugar cavado
para o oprimido. És acusado de haveres gritado com toda a força de teus pulmões
fuliginosos.
És acusado de teres
filhos bonitos e uma mulher doce, que devia ser feia e talhada a foice.
És acusado de não
seres rapaz comportado, meigo, gentil, acetinado.
És acusado de
conheceres a prensa, e não te afugentar o ronco que ela faz na madrugada.
És acusado de quereres a pátria livre, e livre,
também, o coração e os sentimentos do homem.
És acusado de
rezares e de por a boca no trombone quando todos se calam e descrêem de Deus e
dos homens.
És acusado de teres
o desplante de ser líder num país desnaturado onde quem levanta a fronte é
triturado.
És acusado de haveres perdido a paciência de esperar
pelo futuro que não chega nunca.
És acusado de
usares sapatos 42, de couro, quando o normal é sandália havaiana.
És acusado de
romperes as cadeias invisíveis que amarram teus braços peludos e tuas mãos
penadas.
És acusado de atraíres os operários com tua voz, teu
berro, teu silêncio, teu olhar, tua dor, tua ânsia, teu mistério, e saberes
contar, sorrindo, tristes histórias recolhidas em barracos e cômodos-e-cozinhas.
És acusado de não
seres o que queriam que tu fosses.
Meu caro operário sentado no banco dos réus, por
favor, recebe este recado:
Se existir mesmo
essa senhora difusa e vaga a que chamam Justiça, confia nela.
Não creio que essa
matrona seja cega.
Publicado no dia quinze de agosto de 1980, pelo jornalista
Lourenço Diaféria
“Os poderosos podem
matar uma, duas
ou três rosas,
mas não
conseguirão
deter a primavera”
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